quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Como fazer que a aprendizagem saia do feitiço do tempo

Uma situação curiosa que tem sido muito aproveitada no cinema e demais obras de ficção, é o laço do tempo, quando um determinado período de tempo, um dia por exemplo, repete-se indefinidamente. Tem raízes antigas, como na mitologia grega por exemplo, na lenda de Sísifo.

Um exemplo de um filme que usa este argumento, talvez o mais famoso destes, é o “Feitiço do Tempo”, com Bill Murray e Andie MacDowell. Quando foi lançado, em 1993, foi algo subestimado, tornando-se referência anos depois. Conheci o filme em 1994, num programa de educação executiva que então fazia, e gostei bastante dele também.


No filme, Murray interpreta Phil Connors, um egocêntrico homem do tempo da TV em Pittsburgh, que durante a abertura do anual Dia da Marmota (2 de fevereiro) em Punxsutawney, encontra-se repetindo o mesmo dias várias vezes. Depois de se deixar levar por todas as formas de perseguições hedonísticas, ele começa a reavaliar sua vida e prioridades (retirado da Wikipédia).

O filme evoca, no meu entender, uma das grandes questões humanas que é o da evolução individual por meio da aprendizagem pela experiência. Enquanto buscamos motivações não alinhadas com este objetivo, nossa aprendizagem será muito limitada, quando houver, levando a repetições com ganhos muito pouco significativos. É a “experiência de vinte ciclos de um ano” e não uma “experiência de vinte anos” de fato. Entretanto, quando o objetivo essencial é descoberto e as ações alinhadas a este, repensam-se as disposições e valores e as virtudes, desenvolvidas como conseqüência, ajudam a modificar os caminhos percorridos e levar a uma sabedoria prática e orientada para a mudança interior. Quando houve este “click” em Connors, o castigo sisifiano de indefinidamente fazer subir uma pedra para deixá-la cair teve seu sofrimento implícito apreendido e, com isso, levando a liberdade, materializado pelo retorno do transcurso normal dos dias para o homem do tempo. Reforço, a liberdade retornou com o cultivo de virtudes ditas superiores, permitindo-se acompanhá-la, por decorrência, do amor e da felicidade (aqui coloquei umas pitadas “aristotélicas”, data vênia).

Novamente faço aqui uma analogia com o modelo de Argyris e Schon de aprendizagem de circuito simples, mais voltado às rotinas, e a de circuito duplo, em que os valores e pressupostos são desafiados. O filme em questão dá uma clara mensagem que a aprendizagem só dá um salto objetivo quando for a de circuito duplo.

E as organizações? Bom, quantas organizações não vivem este laço do tempo? Repetem as mesmas rotinas equivocadas, ou obsoletas, ou viciadas, ou motivadas por concepções equivocadas a respeito do lucro, das pessoas e das relações com os diversos públicos de interesse, como clientes, força de trabalho e sociedade, e não conseguem transcender seus resultados? Reclamam que fazem “PDCA”, que aprendem com a experiência, mas bitolados com seus padrões intocáveis, não avançam e culpam o “sistema”, por isso. Somente quando a organização repensa seus valores e pressupostos e explicita este remodelamento em suas estratégias, seus processos e seus procedimentos, é que esta deixa de “patinar”.


Logo, o exercício do pensar deve ser fundamental para a aprendizagem, para que ela torne-se efetiva e permita que se saia do tal “feitiço do tempo”, isto quando há chance para repetir experiências, pois às vezes, nem isto é possível, a falência ou aquisição por outra organização mais forte vem primeiro. E este exercício do pensar coletivo pode ser facilitado por práticas e tecnologias de gestão do conhecimento, como o uso mais consciente das comunidades de prática, ou o cultivo da aprendizagem contínua e em equipe, para usar os conceitos propagados por Peter Senge. Assim, a liberdade e outras prerrogativas de crescimento para as organizações podem ser obtidas, tal como o foi pelo personagem interpretado por Murray, por práticas de aprendizagem mais densas e questionadoras, fazendo que estas mesmas organizações possam viver novos dias, e não os mesmos dias, sempre.


Américo Ramos , DSc em Administração,
vinte anos de experiência profissional e acadêmica.
E-mail: americodacostaramos@gmail.com.
Visite o blog Aprendizagem e Organização”
(http:www.aprendizagemeorganizacao.com).

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Conhecimento transferido e conduzido, ou refratado e induzido?



Américo Ramos, DSc. em Administração, vinte anos de experiência profissional e acadêmica.
E-mail: americodacostaramos@gmail.com

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Lembrando as aulas de física, há refração quando dois meios transparentes pelos quais passa um feixe de luz têm diferentes índices de refração, que é uma relação entre a velocidade da luz no vácuo (c) e a velocidade da luz no meio em consideração. A luz, desta forma, apresenta, aos olhos do observador, uma descontinuidade.


Por sua vez, é muito antiga a associação existente entre luz e conhecimento, associação esta bem anterior ao movimento iluminista, por exemplo. Entretanto, é sabido que o conhecimento nunca “circula” da mesma forma no nível pessoal, ao contrário do que ocorre no nível impessoal.


Nonaka e Takeuchi

O conhecimento impessoal é como uma luz propagando-se no vácuo, que permanece com a mesma velocidade, sem refrações: é um conhecimento com a mesma visualização, como o conhecimento explícito, conceito disseminado por Nonaka e Tageuchi (1997) em seu livro “Criação do Conhecimento na Empresa”, a partir de um conceito de Michael Polanyi (PRUSAK, 1997).


Já o conhecimento pessoal pode ser comparado à luz referatada: o conhecimento muda de visualização ou conformação a depender da pessoa que a está apreendendo, segundo seus valores, conceitos e experiência de vida. Algo como o conhecimento tácito, seguindo a mesma referência do parágrafo anterior. Isto também é válido para a transferência de conhecimento entre pessoas (socialização): o conhecimento pessoal, tácito, de cada um, sofrerá mutações segundo a individualidade destes.


Pode ser aplicado o mesmo conceito para organizações, que apreenderá o conhecimento segundo sua trajetória, seus valores, sua cultura, suas práticas, aspectos locais, entre outros aspectos que conformam sua singularidade. Assim, ainda, a transferência de conhecimento entre organizações, como entre matriz e subsidiárias, ou entre empresa adquirente e adquirida, se dará segundo estas singularidades, modificando o conhecimento.


Exemplificando com a transferência de conhecimento gerencial promovida por multinacionais (ver, por exemplo, minha tese de doutorado), a dicotomia entre aspectos globais, como sistemas padronizados ou modismos gerenciais, por exemplo, e aspectos contextuais, expressa por peculiaridades do país onde a unidade em questão atua e da própria organização em particular, pode ser descrita, segundo a metáfora da refração, como a propagação do conhecimento/luz pelo vácuo, configurando as soluções universalistas da gestão (continuidade óptica, segundo a Física, e continuidade gerencial, dentro desta analogia) ou a propagação por e entre diferentes meios culturais/organizacionais/gerenciais, levando a uma absorção e utilização diversa de acordo com cada unidade e respectiva singularidade.


Assim, não há transferência perfeita de conhecimento, pois as organizações são meios refratáveis imersas em sociedades também refratáveis. Mesmo quando há propagação no vácuo universalista e padronizador, as peculiaridades continuarão de alguma forma.


Logo, não existirá uma “organização vácuo”, na qual o conhecimento passa sem a menor resistência, mantendo a mesma conformação explícita de seu agente. Igualmente não existirá também uma “organização espelho” pura, que não deixa passar nenhuma luz/conhecimento, refletindo-a/o.


Este conceito pode ser associado a outro, também discutido em minha tese, que é o de acoplamento estrutural, ligado à autopoiesis.


Maturana

Autopoiesis significa autoprodução (MARIOTTI, 2000). Esta perspectiva foi bastante popularizada pelo trabalho desenvolvido por dois cientistas chilenos: Humberto Maturana e Francisco Varela. Dentro da perspectiva da teoria de sistemas, seus estudos apontaram, porém, para a idéia de que todos os sistemas vivos são organizacionalmente fechados, ainda que não isolados: a visão de sistema aberto seria a tentativa de dar um significado a estes sistemas pelo ponto de vista de um observador externo (Von KROGH; ROOS, 1995; MATURANA; VARELA, 2005; MARIOTTI, 2000; MORGAN, 1996).

Varela

Segundo Maturana e Varela (2005) a organização autopoiética está vinculada a uma fenomenologia biológica, onde os seres vivos produzem-se a si mesmos continuamente em uma rede de interações. A autopoiesis é o que produz a autonomia dos seres vivos, enquanto sistemas. A estrutura de uma unidade é sujeito de uma ontogenia – história de mudanças na estrutura de uma unidade de forma a não haver perda de sua organização específica. Meio e unidade sofrem “mudanças estruturais mútuas e concordantes” (MATURANA; VARELA, 2005, p. 87), o chamado acoplamento estrutural, cuja expressão traduz-se na aprendizagem.


A linguagem, como fenômeno social, opera no acoplamento estrutural entre indivíduos. Igualmente as práticas e tecnologias de gestão, que constituem-se na linguagem gerencial.


Por sua vez, a utilização do conceito de refração em organizações foi usada por outros autores, como Riggs (1964), em seus estudos sobre a aplicação de modelos de administração pública no mundo, embora não exatamente do jeito comentado aqui.


Pessoas e organizações, portanto, tendem a refratar o conhecimento externo, amoldando-o internamente. A transferência tem, como isso, natureza indutiva e não simplesmente condutiva: opera em campos gerados por cada organização segundo suas características intrínsecas (trajetória histórica da organização) e extrínsecas (regionais, nacionais). Algo a se lembrar sempre na hora de analisar os pacotes de consultoria quando prometem transferências rápidas e diretas: não estamos no vácuo.


sábado, 18 de setembro de 2010

Hesíodo e as Organizações

Tomando como fonte a Wikipedia, Hésíodo foi um poeta da Grécia antiga e viveu em Ascra, no final do século VIII a.C..

Foi autor de Teogonia, ou a genealogia dos Deuses, bem como Trabalhos e os Dias, que trata do mundo dos mortais e de sua organização, enfocando temas do trabalho e da justiça. com narrativas míticas abordando, por exemplo, os mitos de Prometeu e de Pandora.

Quero, entretanto, salientar um trecho desta última obra, que foi destacada por Aristóteles em "Ética a Nicômaco", de cujo livro extraí e aqui reproduzo:

Ótimo é aquele que de si mesmo conhece todas as coisas. Bom, o que escuta os conselhos dos homens judiciosos. Mas o que por si não pensa, nem acolhe a sabedoria alheia, esse é , em verdade, um homem inteiramente inútil.

Este pensamento de Hesíodo trouxe-me algumas reflexões para o tema principal deste blog, ou seja, Aprendizagem e Organização.

Uma organização excelente é aquela, então, que prioriza o desenvolvimento de suas competências e a inovação.

Edith Penrose

Sobre o desenvolvimento das competências muito já foi estudado, especialmente a partir dos trabalhos de Schumpeter, Penrose, entre outros, passando pela elaboração da teoria baseada em recursos nos anos 80, desembocando, mais aos olhos do mundo corporativo, na obra de Hamel e Prahalad, "Competindo para o Futuro", em que as competências são definidas no capítulo 9 como um conjunto de habilidades e tecnologias que permite à empresa oferecer um beneficio, um valor, fundamental e único ao cliente, relativamente aos seus concorrentes, gerando a partir delas novos produtos ou serviços.


Alois Schumpeter
O conceito de competências como um conjunto, ou uma combinação, ecoa Schumpeter na sua definição de inovação, em seu livro "A Teoria do Desenvolvimento Econômico", reforçando-se o caráter descontínuo e de ruptura, e não ajuste, desta combinação. As inovações, segundo Schumpeter, podem se dar no produto, no processo, no mercado, nos insumos ou pela criação ou ruptura de uma posição de monopólio.


Já a boa organização é aquela que concentra seus esforços na busca das melhores práticas e na informação sobre o mercado, utilizando tecnologias como o benchmarking e a inteligência competitiva.

O benchmarking consiste basicamente em aprender com as melhores práticas no sentido de melhorar seu desempenho e torná-lo, ele próprio, proficiente. Tal processo de comparação pode ser feito com o concorrente, mas também dentro da própria empresa, com empresas de outros setores ou dentro de uma função específica, como por exemplo, RH. Atribui-se à Xerox o pioneirismo na aplicação desta tecnologia organizacional.

Já a inteligência competitiva é "a atividade de coletar, analisar e aplicar, legal e eticamente, informações relativas às capacidades, vulnerabilidades e intenções dos concorrentes, ao mesmo tempo monitorando o ambiente competitivo em geral" (ver referência anterior). Adquire-se, assim, dados que, convertidos em informações, servem a formação de um conhecimento sobre as organizações que participam da mesma arena competitiva.

O conceito de inteligência competitiva pode ser estendido a todos os públicos de interesse, inclusive sociedade, sendo importante que a organização, com fins lucrativos ou não, conheça todas as implicações de suas ações e as receptividades à sua missão e seus objetivos.

Bom, se uma organização não desenvolve competências, não inova por si própria, não faz benchmarking e nem conhece os públicos a quem deve servir, a organização provavelmente perderá sua utilidade individual, extinguindo-se ou, ainda, sendo adquirida por outras empresas ou outras formas de participação.

A condição de singularização de uma organização, assim, pode, baseando-se em Hesíodo, ser conhecida, ou buscando o desenvolvimento de seus processos produtivos e decisórios por seus próprios recursos, ou apreendendo-os do ambiente que a cerca. Isto dará a sua razão de ser, a sua utilidade.

Américo Ramos , DSc em Administração,vinte anos de experiência profissional e acadêmica. E-mail: americodacostaramos@gmail.com. Visite o blog Aprendizagem e Organização” (http:www.aprendizagemeorganizacao.com).

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Estratégia, Sun Tzu e o Conhecimento


Um dos livros clássicos mais referenciados nos estudos sobre Estratégia é “A Arte da Guerra”, de Sun Tzu, estrategista militar chinês do século IV A.C.. É um livro muito fácil de adquirir e não será resenhado aqui. O que quero chamar a atenção, apenas, é o famoso trecho que hoje é responsável pela migração do interesse do livro de estrategistas militares para executivos e administradores:

Aquele que conhece o inimigo e a si mesmo lutará cem batalhas sem perigo de derrota; para aquele que não conhece o inimigo, mas conhece a si mesmo, as chances para a vitória ou para a derrota serão iguais; aquele que não conhece nem o inimigo e nem a si próprio, será derrotado em todas as batalhas"

Falo este trecho sempre ao longo do curso de Estratégia Competitiva para meus alunos, pois para mim resume as principais escolas de pensamento e ação sobre o assunto: posicionar-se frente ao ambiente e desenvolver vantagens competitivas. Divido o curso praticamente com base nisto. Além disso, tem tudo a ver com conhecimento e aprendizagem.

Posicionar-se frente ao ambiente refere-se a “conhecer o inimigo”. Realizar a inteligência competitiva, conhecer o ambiente externo, as partes interessadas, a arena competitiva e as forças que nela agem.

Desenvolver vantagens competitivas refere-se a “conhecer a si mesmo”. O desenvolvimento de ativos estratégicos, competências essenciais ou capacitações dinâmicas, inovação e conhecimento, cadeia de valor, são exemplos desta parte.

Tanto em um caso como no outro, cabe um grande esforço de conhecimento e aprendizagem para que estas duas grandes dimensões estejam dominadas. Assim, a dinâmica competitiva da organização estará assegurada. Ou melhor, quase assegurada, já que o conhecimento não se encontra em estado puro, absoluto, já diziam vários autores, como Frank Knight, Friedrich Hayek, ou Herbert Simon, ou mesmo, em outro campo, Werner Heisenberg (o do princípio da incerteza, lembram-se das aulas de Química e Física?), para dizer alguns dos mais famosos, ou antes deles, pragmatistas como John Dewey.

Expandindo o conceito, a estratégia, como qualquer ação orientada para o alcance de determinado fim, depende do conhecer, como conjugação de razão, sensibilidade e experiência, ou seja, capacidade dos sujeitos em assimilar as sensações vivenciadas em si próprios e no contato com os objetos exteriores, para em seguida interpretar o fluxo de tais experiências e, com isso, conjecturar e escolher caminhos dentro, é lógico, de uma “certa incerteza”, portanto, associando-se a um determinado risco.

Portanto, as práticas de Gestão do Conhecimento e de Aprendizagem Organizacional são fatores críticos de sucesso para o desenvolvimento da estratégia competitiva da empresa. Mais ainda, pode ser usado para a estratégia de desenvolvimento da organização, independente do aspecto competitivo, tão influenciado pelo jeito “Darwin” de ser. Até porque Sun Tzu já havia dito: “Evitar guerras é muito mais gratificante do que vencer mil batalhas”, ou, “distorcendo livremente” (afinal é um livro de um guerreiro, não de um monge, como às vezes eu tendo a ser): ser sustentável dentro de seu propósito é mais gratificante do que mil invasões no direito e espaço de outros.

Para terminar, como toda ação orientada para determinado fim, cabe saber se este fim é legítimo, o que nos leva a considerar o elemento ético na condução estratégica, assunto bem contemporâneo. Aí que residem os dilemas citados no final do parágrafo anterior. Cabe matar, ou exterminar seu concorrente? Cabe conquistar e saquear um povo, ou gerir de forma predatória uma aquisição? Tudo é permitido à competência, em nome da lógica capitalista? Nada como citar Porter, não ... Potter, quando ouviu o aristotélico Dumbledore dizer: "São as nossas escolhas, Harry, que mostram o que verdadeiramente somos, muito mais do que nossas habilidades".


Américo Ramos , DSc em Administração,
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terça-feira, 7 de setembro de 2010

Torre de Babel, gestão de mudanças e aprendizagem



Tenho feito alguns estudos de casos sobre gestão de aquisições internacionais em empresas brasileiras, entrevistando pessoas tanto das empresas adquirentes como das adquiridas, buscando extrair delas, lições aprendidas e oportunidades de transferência de conhecimento sobre o processo, em termos de suas atividades de gestão.

Há uma rica diversidade de assuntos que podem ser tratados acerca do tema, mas hoje queria destacar um dos principais, um fator crítico de sucesso para uma gestão de aquisição bem-sucedida: a gestão das singularidades intra-organizacionais (cultura, identidade, imagem). Estes conceitos de cultura, identidade e imagem foram sistematizados na abordagem da dinâmica da identidade organizacional de Hatch e Schultz.

Fundamentando-se especialmente no conceito de "Eu" e "Mim" de George Herbert Mead, pensador ligado ao pragmatismo e precursor do interacionismo simbólico, as autoras enfatizam a cultura não como uma variável a ser medida, mas como um contexto, a partir do qual as interpretações da identidade organizacional e as intenções de influenciar a imagem organizacional são formuladas. Portanto, quando a identidade organizacional é expressa, usa-se artefatos culturais para apresentar uma imagem a ser interpretada por outros. Enquanto a imagem projetada é contextualizada pela herança cultural da organização, a interpretação que outros dão a esta projeção é contextualizada por esta cultura.

Deste modo, cultura, identidade e imagem são três partes de um sistema de significados definidores de uma organização. Neste modelo, a cultura estaria na base do “Eu”, com relação à identidade; e a imagem na base do “Mim”, com relação a esta mesma identidade – teríamos aqui a passagem do conceito de identidade individual para o de identidade organizacional. A identidade organizacional, por sua vez, mede a relação entre as imagens dos stakeholders (partes interessadas) e os valores da cultura. A relação entre estes três conceitos se dá por quatro processos distintos: a identidade expressa entendimentos da cultura (expressar); a identidade expressa e deixa impressões nos stakeholders e nos outros em geral (impressionar); a identidade espelha as imagens dos stakeholders e dos outros em geral (espelhar); e a identidade é refletida na cultura (refletir).

Dentro do modelo apresentado, a dinâmica da identidade organizacional pode se tornar disfuncional se a cultura e a imagem se tornarem desassociadas. A primeira disfunção ocorre quando a cultura (“Eu”) se torna superdimensionada, o narcisismo organizacional. Um exemplo típico é a imposição de um sistema de gestão por parte de empresas adquirentes, na crença, consciente ou não, de que este sistema é a melhor solução. A segunda disfunção, por sua vez, ocorre quando a imagem (“Mim”) está superdimensionada, a hiperadaptação organizacional. A opinião dos stakeholders sobrepõe-se à cultura e aos valores da organização. Um exemplo dado foi a imposição, pela cultura do consumo, de determinantes estruturais e processuais às organizações, vulnerabilizando-as à perda de sua cultura.



Quando há uma aquisição, há uma confluência de diferentes culturas, identidades e imagens, ao menos as das empresas adquirente e adquirida. Há vários estudos sobre a descrição de formas como esta confluência se dá: com base em estudos anteriores de outros autores, como Barry, ou Marks (o primeiro, à esquerda) e Mirvis, estas formas podem ser basicamente divididas em algo como captação (assimilação), da adquirida pela adquirente ou mesmo o inverso (quando a AmBev, fusão da Brahma com a Antarctica, foi há alguns anos adquirida pela Inbrew mas manteve a liderança no tocante à gestão), coexistência (construtiva ou destrutiva) e combinação, seja para misturar o existente ou criar algo novo a partir dos elementos pré-existentes.

Na prática, porém, os modelos não se reproduzem sempre de maneira tão bem intencionada. A tarefa chamada pelos consultores empresariais de “Gestão da Mudança” torna-se, muitas vezes, ou algo negligenciado, ou um instrumento alinhado às relações dominantes de poder dentro da “nova” empresa. A gestão da mudança busca o alinhamento de valores e práticas, mas como fazer isso em uma “aldeia” em que convivem diversas “tribos”? Ou, mais do que convivem, estão em uma situação de evidente desigualdade?

Vamos supor que um povo guerreiro (romanos, por exemplo) consegue conquistar outro povo em alguma região da Europa ou Oriente Médio e promete ao seu líder privilégios e apoio em troca de lealdade. Este líder aceita, confia e mobiliza o povo derrotado, que fica mais tranqüilo quando vê seu líder junto a eles. Entretanto, “inesperadamente”, há guerreiros romanos traem e executam aquele líder e alguns de seus seguidores, deixando a população totalmente amedrontada. Nada de novo, não? Mas é o que acontece quando a empresa adquirente mantém numa primeira instância um ou mais gerentes da empresa adquirida, para facilitar a transição em um primeiro momento, e logo em seguida, os demitem, quando, no entendimento daqueles, estão mais atrapalhando do que ajudando. Aí não há “Gestão da Mudança” que resista!

Outro aspecto interessante é que cada uma destas “tribos” fala diferentes “línguas”, aqui expressas em valores e práticas, tanto gerenciais quanto nacionais/regionais. Em um processo de aquisição que estudei, conviviam ao menos seis “tribos”: a dos locais da pequena subsidiária já existente, a dos locais contratados após a incorporação da primeira empresa, a dos locais que trabalhavam nesta primeira empresa, a dos locais que trabalhavam na segunda empresa adquirida, a dos expatriados da matriz e a dos expatriados de uma subsidiária de outro país mas de relevância hierárquica que, de certa forma, rivaliza com a própria matriz. Imaginem pôr todos para uma reunião sobre valores e práticas gerenciais! Como vão se suceder os processos de aprendizagem e de transferência de conhecimento nesta autêntica Torre de Babel gerencial e cultural?

Para se chegar ao céu, ou à sustentabilidade de um empreendimento como a gestão de aquisições, ainda mais de aquisições sucessivas, há de se conhecer os vários “idiomas” envolvidos, sob pena de se fracassar. São muitas as “tribos” e a transformação conjunta de suas singularidades na direção de uma singularidade nova requer um esforço de aprendizagem e conhecimento mútuo bastante grande. Assim como ‘Deus” puniu os homens por quererem alcançar o céu a partir de poderes unilaterais, fazendo valer as diferenças nos idiomas, o fenômeno gerencial impede uma gestão de aquisição totalmente ao bel prazer de interesses específicos de um grupo, mesmo que dominante, ignorando totalmente (alguns ou muitos atacam ou desprezam, mas sem ignorar) a diversidade gerencial e cultural existente.

Não há evolução e transformação sem aprendizagem na diversidade: do contrário há confusão, ou seja, babel, ou seja, "babou".

Américo Ramos , DSc em Administração,
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segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Disseram que eu voltei americanizada ...



No dia 4 de setembro houve a apresentação de Ivete Sangalo no Madison Square Garden, em Nova York (leia a notícia). Como parte do "Brazilian Day", foi uma grande festa de brasileiros, especialmente das celebridades que foram dar uma "passadinha" por lá (dizem ter havido até "barraco", mas aqui não é "coluna de fofocas"). Um sucesso, dizem, Ivete, afinal, sabe como levantar uma platéia. Mas a grande questão aqui é, como se vê na imagem ao lado, é a inserção global da artista baiana, e nada melhor do que na "capital cosmopolita do mundo". Dentro da idéia do "Você S.A.", se somos empresas, e empresas se internacionalizam, por que não? Do nosso lado, ainda, não só exportamos jogadores de futebol mas também algumas de nossas empresas começam a ter algum sucesso lá fora.

Obviamente, surgem as críticas. O New York Times fez uma observação (leia a notícia) de que "não será fácil para a sra. Sangalo expandir seu território e se juntar a cantoras como Beyoncé, Madonna e Shakira como uma estrela pop globalmente reconhecida ... Há, inevitavelmente, uma barreira de linguagem para músicas em português.... A sra.. Sangalo tem outro obstáculo: o ritmo. Muitos hits brasileiros, como "Cadê Dalila", usam as batidas rápidas do axé, a música do Carnaval na Bahia --uma batida que poucos fora do Brasil podem acompanhar".

Bom, como o Inglês é a língua franca e a força do império permite que o rock, o jazz ou o soul virem universais e que todos "aprendem a acompanhar", a Madonna ou a Lady Gaga podem. Até a Shakira pode, pois já "se adaptou" (será que ela volta à Copa de 2014 e "desbanca" a Ivete?). Assim, o sucesso é aderir à chamada "Cultura Global", em todas suas nuances.

Esta é uma discussão em voga há muito tempo no tocante à globalização e internacionalização de empresas, ainda mais no contexto das empresas de países emergentes. Na minha tese de doutorado estudei a dualidade global-contextual na aprendizagem gerencial de empresas brasileiras em processo de internacionalização. Assim como uma empresa dita global precisa aprender aspectos contextuais para ser bem sucedida em outro mercado e na gestão de empresas locais, uma empresa emergente, além de buscar também este aprendizado, deve antes saber se expressar nesta linguagem global de gestão, antes de começar a adicionar gradativamente "palavras em seu idioma". As práticas globais formam o idioma e o estilo gerencial, o ritmo. Agora, saber se expressar não quer dizer expressar-se exclusivamente nesta língua, pois a empresa perde sua identidade, ou como reproduziu um dos executivos que entrevistei em minha tese, "brasileiro globalizado é inglês de segunda classe".

Não sei o que vai acontecer, mas se Ivete levar a sério o NYT e resolver ceder muito ao tal gosto global, ela corre o risco de sofrer a "síndrome da Carmen Miranda", artista com a qual a própria Ivete almeja se espelhar (leia no link). Carmen Miranda (leia a biografia) obteve um grande sucesso nos EUA, em parte pelo contexto da segunda guerra mundial e da política de boa vizinhança, em outra, e maior, pelo seu indiscutível talento, e tornou-se possivelmente a artista brasileira (ela nasceu em Portugal) mais conhecida e divulgada por lá durante muito tempo, mas à custa de muita estereotipação. O final não foi dos mais felizes para ela, muito pelo contrário.

Aliás, quando Carmen voltou de sua primeira turnê pelos Estados Unidos, em 1940, com grande sucesso, ela sofreu críticas de que estaria "americanizada". Ela respondeu "na bola", gravando músicas como "Disseram que eu voltei americanizada (ouça)". Mas voltou depois e lá ficou 14 anos, não deixando de pagar o preço pela dissonância cognitiva que suportou como ônus do sucesso e da fama.

Talcott Parsons (importante sociólogo americano e influenciador também de algumas teorias de Administração e, ainda, contemporâneo de Carmen Miranda!) e seus colaboradores, ao discorrer sobre a aprendizagem, já dizia que o conhecimento podia ser criado, mas na maioria das vezes a aprendizagem se dava pela interação com outros atores, seja assimilando padrões por imitação, ou orientações de valores por identificação. Aprender, seja a gerir empresas, seja a gerir carreiras de qualquer ordem, em contextos bastante diversos dos originais, por via da imitação não parece ser uma boa saída, pois os choques culturais acontecem com mais vigor, pela dissonância nos planos dos valores. Conhecer e se expressar nos padrões com os quais não se afirmou, não pode ser dado de maneira restrita.

A aprendizagem interacional de pessoas e de organizações em outros ambientes se faz pela combinação e recontextualização de práticas sem que se percam os principais significantes, tanto no nível macro (social) quanto micro (organizacional/gerencial) responsáveis pela afirmação desta pessoa e desta organização até então, sob o risco de desagregação interna. Não é que porque a Budweiser e o Burger King pertencem aos brasileiros do outrora grupo Garantia que estes vão virar Brahma ou restaurante de comida baiana, ainda mais eles (leia, por exemplo, "Agora ele é o dono do sanduíche"). Ivete admira Carmen, e por isso mesmo deve saber o que fazer.


Para terminar, nesta avalanche de feitos do Brasil emergente, um pouco de "South American way", com a própria Carmem Miranda.



Américo Ramos , DSc em Administração,
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