sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Metendo o focinho onde não é chamado.


Américo Ramos.







Há alguns dias li esta notícia:

Cachorro curioso fica entalado em muro na Califórnia


Um curioso cachorro pastor alemão ficou misteriosamente entalado em um muro nesta semana, quando foi encontrado pelas autoridades com a cabeça presa na altura do pescoço em uma construção a leste de Los Angeles. Mais


Algo muito curioso, em vários sentidos. Será que foi a curiosidade que fez o pobre cão se meter “neste buraco”? Parece aquelas piadas da “carteira com cordinha na rua”, ou ainda a representação do ditado popular “a curiosidade matou o gato, que também podia ser usada para o cachorro, depois desta notícia, embora não com a mesma gravidade, é claro.


Em quantos “buracos” as pessoas entram também por conta da curiosidade!


No mundo corporativo, é normal valorizar a curiosidade, no sentido de inovação, desejo de aprender coisas novas, questionar o pré-estabelecido, desde que aumente o lucro, bem entendido. Mas, será que não haveria um outro termo que representasse melhor a idéia, sem que se incorresse nos seus sintomas colaterais de “se meter onde não é chamado”?


Então lembro-me do “Doctor Angelicus”, São Tomás de Aquino. O notável filósofo, entre os diversos temas sobre os quais discorreu, trata da diferença entre a curiosidade e o que ele chama de estudiosidade, a Studiositas.


A estudiosidade é uma virtude que caracteriza-se pelo empenho pela busca e aquisição do conhecimento. Como um de seus inspiradores, Aristóteles, o Aquinate ressalta também o caminho do meio (também defendido por Buda, Confúcio, entre outros, como já notara Lou Marinoff). Assim, se a estudiosidade se degenera, foge da moderação e o conhecimento passa a ser procurado para satisfazer vícios como o orgulho ou soberba ou a interesses menos úteis para sua missão. Vira curiositas, a curiosidade, o conhecer pelo conhecer motivado pelo desejo exacerbado. A estudiosidade também se alia à fortaleza pois sua prática é desgastante e facilmente corruptora da constância de propósitos (com licença do Deming ...), portanto há de se seguir o caminho, mas também com algumas recreações, desde que saudáveis e não grosseiras ou constrangedoras ao próximo, conforme o caminho do meio.


Sem entrar em um buraco, digo lugar comum, mas já entrando, vivemos hoje em uma sociedade globalizada, em que a igualitarismo dos meios contrapõe-se à má distribuição da oferta, em vários níveis, desde a própria comida (obesidade nos Estados Unidos e até por aqui cada vez mais e desnutrição em países como os da África subsaariana e ainda por aqui, creio que cada vez menos) à informação. Estamos obesos de informação, a oferta é variada, intensa, aceleradíssima com a internet e googles afora (uma “googledice” sem tamanho, rs rs.). Mas se os obesos de comida o são muitas vezes movidos por gorduras, fast-food e coisas do gênero, os obesos informacionais também o são pela informação de baixo significado, ou manipulada, ou mesmo falseada, o fast-food da curiosidade. BBB 11 vem aí! Celebridades, “cultura inútil” (termo muito associado à antiga Rádio Relógio, para os mais novos ver aqui), sensacionalismo de ocasião de jornais populares e redes de rádio e televisão (se fizerem uma pesquisa sobre as falas de entrada do Renato Machado no Bom Dia Brasil da Rede Globo, há um padrão bem observável), “manchetes apelativas” dos jornais, enfim, muito de supérfluo. Pode-se não saber em que país fala-se Holandês; mas ai de quem não souber que Totó morreu ou que Totó está vivo, será definitivamente um alienado! A quantidade de informação de qualidade é muito mal distriburrida (com trocadilho, por favor, como diria o Agamenon, e com licença do Drummond, pela sua poesia).


Assim, as pessoas, entre as quais me incluo, obviamente, cedem aos apelos fáceis da oferta quantitativa de informação, se é que pode ser chamada por este nome, e gera um novo “Ser”, o Obesus Curiosus. Busca a informação por buscar, movido pela curiosidade, desde em saber o que fez fulano ou beltrano, até a busca de informações apenas para ostentar uma falsa erudição, como já dizia Nietzche no século XIX, referindo-se aos filisteus da cultura: ver texto do Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCPR, Antonio Edmilson Paschoal (ou seja, questão antiga, mais antiga do que esta época, inclusive).


Buscar intensa e permanentemente o conhecimento, a estudiosidade, nada contra. Nada contra a internet, muito pelo contrário, sem ela não estaria escrevendo desta forma. A questão é, e vale para as organizações também, em especial quando não sabem que limites adotar quanto à interação internet e empresas no cotidiano: como buscar, aprender e infundir conhecimento, tendo em vista o seu aperfeiçoamento e caminho (seja ele qual e sob que princípios for), as pessoas que o cercam e as organizações com as quais interage, sem degenerar em massificações, nulidades, perversões (pedofilia, por exemplo) e alienações diversas. A informação não é conhecimento, este se transforma se houver outros atributos na pessoa humana, o que por sinal não vem sendo desenvolvida de muito tempo, ou pelo menos, elitizada. Assim ficamos obesos, mas não nutridos. Obesos de informação ou, pior, de dados de má qualidade, e desnutridos de conhecimento e sabedoria. Inchados de curiosidade e carentes de estudiosidade (e na mudança, a síndrome de abstinência é severa, imagine um BBBmaníaco sem assistir a versão deste ano!). E se assim ficarmos, teremos organizações capazes de assombros em tecnologia, economia e marketing, mas carentes de um alinhamento com uma sociedade mais justa, ética e comprometida com um futuro da humanidade em outro nível de aprendizagem, evolução e convivência.


O conhecimento é um chamado, e a estudiosidade leva o Ser até lá. Mas quando se vai onde não é chamado, tentado pelo canto da sereia da curiosidade, corre-se o risco de se ficar atolado em um buraco e, assim, flagrado (e na maior parte das vezes envergonhado) pelas escolhas que foram feitas.


Américo Ramos , DSc em Administração,
vinte anos de experiência profissional e acadêmica.
E-mail: americodacostaramos@gmail.com.
Visite o blog Aprendizagem e Organização”
(http:www.aprendizagemeorganizacao.com).


quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Nowhere mass-man



Américo Ramos






Em postagem anterior comentei sobre o homem-massa de Ortega Y Gasset. Eis o que ele diz a respeito em uma de suas obras, "A Rebelião das Massas":

Massa é todo aquele que não se valoriza a si mesmo - no bem ou no mal - por razões especiais, mas que se sente "como todo o mundo", e, entretanto, não se angustia, sente-se à vontade ao sentir-se idêntico aos demais. ... A massa atropela tudo que é diferente, egrégio, individual, qualificado e seleto. Quem não seja como todo o mundo, quem não pense como todo o mundo, corre o risco de ser eliminado. E claro está que esse "todo o mundo" não é "todo o mundo". "Todo o mundo" era, normalmente, a unidade complexa de massa e minorias discrepantes, especiais. Agora todo o mundo é só a massa... O homem-massa é o homem cuja vida carece de projeto e caminha ao acaso. Por isso não constrói nada, ainda que suas possibilidades, seus poderes, sejam enormes.

Numa boa ordenação das coisas públicas, a massa é o que não atua por si mesma. Tal é a sua missão. Veio ao mundo para ser dirigida, influída, representada, organizada - até para deixar de ser massa, ou, pelo menos, aspirar a isso.

Pretender a massa atuar por si mesma é, pois, rebelar-se contra seu próprio destino, e como isso é o que faz agora, falo eu da rebelião das massas. Porque no final das contas a única coisa que substancialmente e com verdade pode chamar-se é a que consiste em não aceitar cada qual seu destino, em rebelar-se contra si mesmo.

Assim, o homem-massa é basicamente o que não pensa por si mesmo, é basicamente um manipulado. Algo bem conhecido da história das sociedades, sem necessidade de muitas dissecações. Não tem metas, planos, valores próprios. Na sociedade de mercado global, então, a potencialização é explícita e expressiva. Escolhem nossa comida, nossa estética, nossa ética, nossa razão, emoção e fé. Nas organizações, a mesma coisa: escolhem os parâmetros considerados corretos para o melhor desempenho das organizações, dentro do pentagrama satisfação-competência-método-cliente-resultado. Aprende-se o que estiver de acordo com o pentagrama e a ética de mercado que ordena nossos juízos, razão e prática (data vênia, Kant). Apesar do discurso em contrário do mundo corporativo, em que os diferentes são bem-vindos, ainda há muito o que se caminhar para que os que pensam diferentemente da “base aliada” não sejam eliminados, se não de fato, conduzidos ao ostracismo e à indiferença, caso estes assim o permitam.

O pensamento expresso por Ortega y Gasset não é algo isolado, sendo desenvolvido antes e depois dele. O professor de Filosofia Renato Bittencourt faz a associação com o “Filisteu da Cultura”, de Nietzche, de cujo artigo na revista Filosofia (Ciência e Vida) nº 52 destaquei o seguinte trecho a respeito:

Encontramos no "filisteu da cultura" um dos principais avatares do "homem-massa" tal como delineado por Ortega y Gasset em A Rebelião das Massas. O "filisteu da cultura", conceito criado pela intelligentsia alemã do período oitocentista e analisado filosoficamente por Nietzsche na sua Primeira Consideração Intempestiva, se satisfaz plenamente com o cotidiano da vida privada pacata e confortável, não sendo capaz de estabelecer para si próprio a realização de quaisquer tipos de projetos superiores, mas apenas propostas práticas passíveis de ser contabilizadas em melhorias para a sua vida privada imediata. Ao "filisteu da cultura" nada mais interessa do que cumprir as determinações burocráticas que lhe são impostas pelo meio social e, realizando tal intento, poder dormir placidamente sobre os louros da vitória.

O desenvolvimento da indústria promoveu a inserção cada vez mais vertiginosa dos bens culturais no sistema de mercado, promovendo assim a vulgarização da arte e das realizações culturais. Podemos afirmar que o maior malefício cultural promovido pela obtusidade intelectual e existencial do tipo "filisteu" ocorre quando ele detém o poder sobre as instituições artísticas e educacionais, pois essas organizações passam a ser gerenciadas pela óptica do lucro imediato e da comercialização das realizações culturais, que se tornam assim meros objetos consumíveis e, por conseguinte, descartáveis. Esse dispositivo comerciário, incompatível com o florescimento autêntico da vida cultural, se manifesta até mesmo na mercantilização do ensino pela especulação empresarial.

E na própria cultura pop temos ecos, intencionais ou não, desta idéia. Um exemplo está na parte inicial do filme Tempos Modernos de Charles Chaplin (a cena das ovelhas e sua comparação com os operários saindo de uma fábrica). Outro exemplo, em cima do qual vou detalhar um pouco mais, refere-se a uma das músicas dos Beatles, mais especificamente de John Lennon, de que mais gosto, Nowhere Man, composta para o importante e inovador na época álbum intitulado Rubber Soul (1965), um álbum de transição para uma fase mais aprofundada e madura dos “rapazes de Liverpool”. A seguir, a letra e a tradução:


Nowhere Man


He´s a real nowhere man

Sitting in his nowhere land,

Making all his nowhere plans

for nobody.

Doesn't have a point of view,

Knows not where he's going to,

Isn't he a bit like you and me?

Nowhere man, please listen,

You don't know what you're missing,

Nowhere man, the world is at your command.

He's as blind as he can be,

Just sees what he wants to see,

Nowhere man can you see me at all?

Nowhere man, don't worry,

Take your time, don't hurry,

Leave it all 'till somebody else

Lends you a hand.

Doesn't have a point of view,

Knows not where he's going to,

Isn't he a bit like you and me?

Nowhere man, please listen,

You don't know what you're missing,

Nowhere man, the world is at your command.

He's a real nowhere man,

Sitting in his nowhere land,

Making all his nowhere plans

For nobody.

Making all his nowhere plans

for nobody.

Making all his nowhere plans

For nobody.


Homem de Lugar Nenhum



Ele é um autêntico Homem de Lugar Nenhum

Sentado em sua terra de lugar nenhum

Fazendo todos os seus planos inexistentes

Para ninguém.

Não tem uma opinião,

Não sabe para onde está indo

Ele não é um pouco parecido com você e eu?

Homem de Lugar Nenhum, por favor escute,

Você não sabe o que está perdendo

Homem de Lugar Nenhum, o mundo está sob o seu comando.

Ele é tão cego quanto deseja ser,

Só vê o que quer vê,

Homem de Lugar Nenhum consegues ver-me?

Homem de lugar nenhum, não se preocupe,

Pegue teu tempo, não tenhas pressa,

Deixa tudo até que alguém

Te dê uma ajuda

Não tem opiniões

Não sabe para onde está indo

Ele não é um pouco parecido com você e eu?

Homem de Lugar Nenhum, por favor escute,

Você não sabe o que está perdendo,

Homem de Lugar Nenhum, o mundo está sob o seu comando.

Ele é um autêntico Homem de Lugar Nenhum,

Sentado em sua terra de lugar nenhum,

Fazendo todos os seus planos inexistentes

Para ninguém.

Fazendo todos os seus planos inexistentes

Para ninguém.

Fazendo todos os seus planos inexistentes

Para ninguém.


Observa-se em uma das estrofes a expressão "o mundo está sob o seu comando". A rebelião é possível, se partir-se do interno de cada um, como já dizia Ortega Y Gasset.

Isto dito, cabe refletir sobre a proximidade dos conceitos de Organização de Aprendizagem e “Organização Crítica”. Não quero aqui relacionar isto diretamente aos Estudos Organizacionais Críticos, pois entraria em uma seara em que não quero entrar aqui (para quem quiser saber mais academicamente sobre o assunto, ver aqui). O quero aqui dizer é que, ao lado da busca tomasiana do conhecimento (a ser aprofundado na próxima postagem), cabe a disposição crítica da inteligência e, a partir da analogia que já fazia Sócrates entre indivíduos e sociedades, fazendo eu entre indivíduos e organizações, uma organização que tenha a aprendizagem como meta programática precisa também de inserir em sua cultura a disposição crítica, para que esta mesma cultura, que vier a ser arvorada como uma “cultura de aprendizagem”, não venha a ser reduzida para uma cultura meramente ideologizante, sustentada pela lógica do homem-massa sentado em sua organização de lugar nenhum. E para que isto frutifique, talvez tenham que ser reconciliados conceitos possivelmente irreconciliáveis, o de organização e o de emancipação. Este pode ser o desafio de uma nova organização em uma nova sociedade, em que se afirme uma identidade renovada.

Sem mais por ora, deixo os leitores com os Beatles. E ainda, para não dizer que os nacionais também não refletem sobre estes assuntos, José Ramalho e “Admirável Gado Novo”, composto no contexto histórico do final dos anos setenta no Brasil, uma época de transição política.




Beatles Nowhere ManEnviado por Okdude81. - Veja mais vídeos de música, em HD!













Vocês que fazem parte dessa massa

Que passa nos projetos do futuro

É duro tanto ter que caminhar

E dar muito mais do que receber

E ter que demonstrar sua coragem

À margem do que possa parecer

E ver que toda essa engrenagem

Já sente a ferrugem lhe comer

Êh, oô, vida de gado

Povo marcado

Êh, povo feliz!

Lá fora faz um tempo confortável

A vigilância cuida do normal

Os automóveis ouvem a notícia

Os homens a publicam no jornal

E correm através da madrugada

A única velhice que chegou

Demoram-se na beira da estrada

E passam a contar o que sobrou!

Êh, oô, vida de gado

Povo marcado

Êh, povo feliz!

O povo foge da ignorância

Apesar de viver tão perto dela

E sonham com melhores tempos idos

Contemplam esta vida numa cela

Esperam nova possibilidade

De verem esse mundo se acabar

A arca de Noé, o dirigível,

Não voam, nem se pode flutuar

Êh, oô, vida de gado

Povo marcado

Êh, povo feliz!


A



Américo Ramos , DSc em Administração,
vinte anos de experiência profissional e acadêmica.
E-mail: americodacostaramos@gmail.com.
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quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

O Eterno Retorno da Não-Aprendizagem

Américo Ramos.



Fazia minha corrida na academia quando minha atenção se volta, entre várias opções dos canais de TV fechada que então lá passavam, para o filme “Quando Nietzsche Chorou”. Eis a sinopse:

Baseado no best-seller e premiado romance de Irvin Yalom, o filme “Quando Nietzsche Chorou” conta a história de um encontro fictício entre o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (Armand Assante) e o médico Josef Breuer (Bem Cross), professor de Sigmund Freud (Jamie Elman). Nietzsche é ainda um filósofo desconhecido, pobre e com tendência suicidas. Breuer passa por uma má fase após ter se envolvido emocionalmente com uma de suas pacientes, Bertha (Michal Yannai), com quem cria uma obsessão sexual e fica completamente atormentado. Breuer é procurado por Lou Salome (Kather Winnick), amiga de Nietzsche, com quem teve um relacionamento atribulado. Ela está empenhada em curá-lo de sua depressão e desespero, assim pede ao médico que o trate com sua controversa técnica da “terapia através da fala”. O tratamento vira uma verdadeira aula de psicanalise, onde os dois terão que mergulhar em si próprios, num difícil processo de auto-conhecimento. Eles então descobrem o poder da amizade e do amor.

Um dos pontos marcantes do filme, no meu entender, foi a inclusão, em uma fala de Nietzsche, de seu discurso em Gaia Ciência, assim formulado (leia junto com o trecho do filme em vídeo, dito de forma diferente):





“E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: "Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e seqüência - e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez - e tu com ela, poeirinha da poeira!”“. Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderias: "Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!" Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa:"Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?”pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?"

Nietzsche discorre sobre um dos seus conceitos mais conhecidos, o do Eterno Retorno. O conceito também é bastante discutido, com algumas controvérsias. O conceito não estaria amarrado em um ciclo temporal, porquanto se insere em sua perspectiva niilista, desprovida de uma relação de causa e efeito, e dentro do contexto de sua época. Assim, as vivências se repetem de formas alternadas e combinadas, em que possibilidades finitas se repetem, diferentemente, em combinações ao longo de um tempo sem medida.

Por isso mesmo, há quem questione a comparação deste conceito, como formulado por Nietzsche, com a “Roda de Samsara”, da tradição filosófica hindu, relacionada ao fluxo incessante de renascimentos através dos mundos, interrompido apenas com a conquista da sabedoria e da iluminação. As diferenças se dão fundamentalmente pelo caráter niilista da formulação nietzchiana. Mas há controvérsias ... Afinal, Nietzsche conhecia o budismo, tinha amigos que o estudavam, e aparte de suas críticas ao cristianismo, era neto de pastores luteranos (seu contemporâneo Freud explica...)

O conceito do Eterno Retorno também se encontra em várias civilizações e está presente em filmes como o Feitiço do tempo, já comentado aqui. Aliás, o eterno retorno está presente no cotidiano, com a sucessão das quatro estações, combinações eternas mas que não se repetem da mesma forma, bem como na recordação de datas comemorativas e alinhadas a algum mito ou ritual, como este dia 6 de janeiro em que é celebrado o Dia de Reis pelo cristianismo ocidental e quando as árvores de Natal costumam ser desmontadas, girando a roda de cada ano.


Abstraindo-me de um alinhamento a uma ou outra visão sobre o assunto, servindo-me destas como pano de fundo, entendo que estas metáforas, se assim posso dizer, são muito úteis para o encarar da aprendizagem em nossa vida como um todo e para as organizações, em particular.

As organizações encerram, por definição, uma série de rotinas, que, também por definição, repetem-se, de forma finita em termos absolutos, mas em relação à existência de uma pessoa em uma organização, de forma infinita. Combinações de interações entre circunstâncias e rotinas se repetem de forma, por que não, atemporal, massacrando alguns, alienando outros, servindo de revolta para outros tantos, sendo base de poder para mais alguns etc.. Costuma-se dizer que, para algumas pessoas, vinte anos de experiência são vinte vezes um ano, reforçando uma repetição totalmente infrutífera em termos de aprendizagem.

A experiência é fator crítico de sucesso da aprendizagem nas organizações e na vida, data vênia pela separação, desde que aproveitada. Entretanto, se a rotina é vivida pelas pessoas sem nenhuma sagacidade, de nada adianta. Cai-se na roda e o eterno retorno aos escritórios, oficinas, agências e postos de trabalho em geral se dá sem serem observadas as sutilezas das variações que as circunstâncias oferecem.

A Não-aprendizagem nas organizações tem na roda de Samsara sua metáfora e no eterno retorno seu aterrorizante (qualidade empregada pelo próprio Nietzsche) controlador. Lembro aqui que a aprendizagem técnica, instrumental, esta é até mais estimulada, mas a aprendizagem pela indagação e pela interação, esta requer uma convivência diferente com esta diferente repetição de experiências. A aprendizagem de segundo ciclo (roda!) transcende a roda. Os homens massa de Ortega y Gasset adoram esconder-se nestas rodas (aliás, um tema para futura postagem), dos quais talvez observasse ironicamente.

Aprender é transcender à roda da experiência.

Américo Ramos, DSc em Administração

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