domingo, 11 de abril de 2010

Que país do futebol é este? A Aprendizagem e Gestão no balanço de Heráclito.



Voltando ao estudo que fiz sobre a aprendizagem de empresas multinacionais brasileiras com o fluxo de conhecimento gerencial entre suas matrizes e suas subsidiárias ou coligadas, a suposição fundamental que foi validada é que este aprendizado está sujeito a dois tipos de forças, operantes tanto no nível nacional quanto no organizacional: a convergente, relacionada a práticas organizacionais estandardizadas e globais; e a divergente, em que o aprendizado é considerado como uma prática social sujeita às singularidades organizacionais e culturais.

Neste caso, nota-se que uma prática de gestão, digamos, de melhoria da qualidade, ou de gestão de desempenho de pessoas, ainda que tenha uma origem externa ao Brasil, em geral americana, incorpora características ligadas aos valores culturais brasileiros e é esta prática que vai ser implantada em outros países, até mesmo os Estados Unidos, que, por sua vez, sofre outras mudanças em função do contexto diferente, apesar da essência “global” continuar basicamente a ser a mesma.

Não é incomum, portanto, que a prática de gestão torne-se, pelas mãos do país originalmente receptor, melhor e mais competitiva, a ponto de se impor no país que criou a prática. O exemplo do modelo japonês de gestão é clássico, herdou sua essência da experiência americana quando da intervenção dos Estados Unidos no Japão pós-guerra, assimilou segundo suas práticas e valores e o resultado foi a supremacia competitiva japonesa até mesmo nos EUA, em especial nos anos oitenta e noventa. O “pavor americano” se refletiu, inclusive, no cinema, como em “De Volta para o Futuro 2”, em que, em 2015, Mc Fly era demitido por um oriental. Na época, falar-se-ia no Japão, embora agora, mais perto da data, poderia ser sugerida a China (quem quer ver a cena, no original em inglês, clique aqui).

No caso do Brasil, obtive um depoimento interessante de profissionais de uma das empresas que pesquisei, com um sistema de gestão bem estruturado e atuação nos Estados Unidos. Primeiramente, o pessoal das empresas americanas adquiridas por lá mal conheciam devidamente práticas que se originaram deles próprios, embora trabalhassem em um setor industrial há muito obsoleto. Segundo, resistiam à mudança de forma bem semelhante a brasileiros em empresas adquiridas ou implantadas por americanos, ou ingleses, japoneses etc, inclusive aquela clássica “eu faço de conta que concordo, mas na realidade faço diferente”.

Assim, práticas de gestão, bem como quaisquer outros tipos de práticas, modificam-se a depender da organização e país em que são implantados. Repito, isto vale para a gestão como vale, por exemplo, para o futebol. O futebol como conhecemos foi “inventado” na Inglaterra, que deteve a supremacia nesta modalidade esportiva por muito tempo, a ponto de suas seleções negarem-se a participar de campeonatos por entender que eram muito superiores. Quando foram obrigados a reconhecer a conjuntura, já era tarde demais, tanto que só ganharam até hoje uma Copa do Mundo, e em casa, em 1966. Aliás, o Brasil ganhou três de seus cinco campeonatos com vitórias sobre a Inglaterra, como a de 1970, jogo ilustrado acima. Até se diz que o Brasil é o país do futebol. Ou é a Inglaterra? Ou é a Itália, com seu “calcio”? Bom, não é de nenhum país. Assim também, de certa forma, são as práticas de gestão, quando trabalhadas e desenvolvidas segundo seus contextos, experiências e interações.



Uma teoria aplicada também à gestão que explica bem este tipo de fenômeno interativo é o da autopoieisis, ou auto-produção, associada aos biólogos chilenos Maturana e Varela (um resumo do livro “A árvore do conhecimento” pode ser lido aqui), mas que possui outros autores antecedentes, mais notadamente o precursor do pragmatismo, Charles S. Pierce. O conhecimento é criado de forma recursiva, não por transferência pura e simples, ou seja, a aprendizagem se dá pela transformação interna que se dá em uma organização a partir das informações que vem da interação com outra, seja uma matriz, uma outra organização independente, uma subsidiária dela, uma subsidiária como ela etc.. Assim uma prática evolui pela interação recursiva: caso contrário, é uma mera dominação ou uma implantação que, por não se vincular diretamente com o contexto em jogo, tem grande possibilidade de não ser tão bem-sucedido. Na minha pesquisa mesmo tomei conhecimento de algumas experiências de empresas brasileiras em outros países que, quando a rigidez imperava ou, no fundo, a matriz brasileira era muito auto-centrada, a aprendizagem gerencial perdia muito de sua potencialidade.

A chave da aprendizagem nas organizações, portanto, está em boa parte em entender as propriedades da recursividade na interação com outras organizações e entender que as práticas de gestão, com seu caráter tanto técnico quanto gerencial, devem ser desenvolvidas levando em consideração os aspectos globais e genéricos da prática, em função do dito lado técnico, mas também entendendo o contexto e os atores em jogo, levando em conta o lado social. Assim a prática é transformada, amoldada e internalizada, como o rio que está continuamente diferente dependendo do lugar por que passa, ainda que carregue ... água: uma outra forma de dizer o que já dizia “seu Heráclito”, lá de Éfeso.


Américo Ramos é Doutor em Administração, com vinte anos de experiência profissional e acadêmica .E-mail: americodacostaramos@gmail.com. Visite o blog “Aprendizagem e Organização” (http:www.aprendizagemeorganizacao.com).

terça-feira, 6 de abril de 2010

Aprender no Trabalho: prender a dor, abrir o pendor ou praticar o pertencer?


Figura:

A palavra trabalho vem do latim “tripalium”, um instrumento romano de tortura, uma espécie de tripé formado por três estacas cravadas no chão. Tal palavra carregada de um significado como este pode dificultar sobremaneira associá-la à aprendizagem e ao conhecimento.

Ao trabalharmos a aprendizagem nas organizações, o associamos indissoluvelmente ao trabalho, só que não ao trabalho torturador, senão ao resultado de uma experiência, mesmo que de rotina, mas implicando sempre em oportunidades de melhoria. Aprender pela experiência, a partir de concepções a priori, continua a ser a regra, como dispõe o bom Kant.

Entretanto, o trabalho continua a ser bastante associado a algo pesado, extenuante, alienador, bastante afastado da realidade da aprendizagem como é idealmente desejada. As condições do real impõem uma situação “imaginária”, do tipo “matrix” que levam ao “aprendizado por condicionamento” ou “a vida é assim mesmo ...”.

Contudo, o conformismo não subsiste por muito tempo, podendo levar à revolta, à loucura, ao “burnout”, a depressão, a tudo junto. E mais: tais problemas não escolhem classes ou atores do processo, sejam eles “dominados” ou “dominadores”, “oprimidos” ou “opressores”.

Tanto é assim que neste último final de semana revisitei duas canções tanto opostas quanto semelhantes: A Fábrica, de Legião Urbana (para ver, ouvir e ler, clique aqui) e Capitão de Indústria, canção mais conhecida hoje em dia na interpretação dos Paralamas do Sucesso (para ver, ouvir e ler, clique aqui), embora eu a conhecesse em uma versão ainda mais antiga com outro intérprete.

As duas canções expressam a profunda insatisfação, seja do capitão de indústria, seja do trabalhador da fábrica, com a forma que o trabalho interpõe-se sobre eles. Tratam de como a indústria e seu trabalho aliena, escraviza, domina, impacta negativamente o ambiente etc..

E o que se aprende com isto?


Recorro aqui a Hannah Arendt, teórica política (como ela preferia ser intitulada) alemã, em sua obra “A Condição Humana” e a relação, aplicável ao “trabalho” entre o labor, o trabalho e a ação. Partindo desta relação, entendo que a acepção mais “trabalhada” do trabalho vem do primeiro elemento, que está ligado à dor que é prendida e sofrida pelo homem, para se chegar a algum lugar. Há, porém, o segundo significado, ligado à “Obra”, que liga-se à ação de abrir-se ao pendor, à vocação, cujo prêmio é a realização criativa. Este significado já está bem próximo do que almejamos do aprendizado, aprender com a experiência e fazer, produzir, obrar cada vez mais e melhor. Todavia, há ainda o terceiro significado, o mais temido pelos pretensos donos do controle e do poder: a ação, ligada à prática, que por sinal é a visão sobre aprendizagem mais propalada atualmente. A aprendizagem deriva-se da prática social, da interação, e aí as comunidades de prática, redes sociais etc., apresentam-se no trabalho coletivo humano nas organizações como os símbolos da modernidade. É praticar o pertencer.

Mas aprender com e pelo trabalho envolve, por extensão, todos estes elementos. É mais agradável, ou politicamente correto, aprender exercendo a interação e o pendor criativo, mas aprender também se dá pelo esforço e na dor, ainda que não só nisto. Neste contexto, aprender em um sentido mais amplo é realmente emancipar-se, sair da opressão que nos condicionamos, mesmo como opressor. E aí, se me permitem a digressão, Paulo Freire (Pedagogia do Oprimido e outros) nunca mais será lido por mim do mesmo jeito.



Para saber um pouco mais da obra de Arendt, "A Condição Humana", comece por ler um resumo.

Para saber um pouco mais da obra de Paulo Freire, "Pedagogia do Oprimido", comece por ler um resumo.

E se quiserem ver Legião Urbana e Paralamas do Sucesso juntos, veja aqui um trecho de um show que fizeram na TV Globo há mais de vinte anos, disponível no seu todo em DVD.





Américo Ramos é Doutor em Administração, com vinte anos de experiência profissional e acadêmica .E-mail: americodacostaramos@gmail.com. Visite o blog “Aprendizagem e Organização” (http:www.aprendizagemeorganizacao.com).

sábado, 3 de abril de 2010

Caminhando e gerenciando e seguindo a lição ...


Ciro, o Grande

Minha tese de doutorado versou sobre a aprendizagem de multinacionais brasileiras com o fluxo de conhecimento em práticas de gestão. Conta, portanto, aspectos da trajetória destas multinacionais com o inter-relacionamento entre seus valores, práticas e sistemas de gestão, com os valores, práticas e sistemas de gestão das empresas subsidiárias, muitas das quais adquiridas, sem contar os diferentes contextos institucionais dos países onde tais matrizes e subsidiárias se situam.

Um dos aspectos que me chamaram a atenção durante a pesquisa é como as empresas brasileiras agiam em relação às empresas “conquistadas”: o quanto elas impunham seus sistemas, ou respeitavam as competências, valores e potencialidades das subsidiárias ou coligadas em benefício da empresa como um todo e seus resultados.

É prática comum em muitas empresas que adquirem outras o exercício da “síndrome do saque”, retirando tudo que pode da empresa adquirida até vender “o bagaço” quando os resultados, por exaustão, cessarem de existir. Isto levava ao desespero e preocupação a força de trabalho da empresa comprada. Quando a empresa compradora implanta uma política mais flexível e busca aproveitar os recursos locais e desenvolver a empresa, seus executivos não raramente são vistos como salvadores da Pátria.

O que pode ser observado é que existe uma significativa semelhança entre os processos de expansão das empresas multinacionais com o processo de dominação entre países ao longo da história. Afinal, até há pouco tempo atrás, em termos relativos, era o Estado quem liderava diretamente guerras e dominações políticas para exercer a dominação econômica, enquanto hoje as empresas fazem em parte este papel sem o recurso da guerra ou de uma política de estado mais ostensiva, embora, claro, esta continue, haja vista a guerra do Iraque etc. De qualquer forma, tem-se hoje uma outra visão, algo mais ampliada, de Relações Internacionais por conta disto.

Dentro desta longa tradição de dominação pelos países, um estudo comparativo entre processos de dominação da África pelos Europeus nos séculos XIX e início do XX e a dominação da Península Ibérica pelos muçulmanos entre os séculos VII e XV, especialmente entre os séculos VII e XII, pode fornecer importantes subsídios para as possibilidades de um fluxo mais ou menos integrativo de conhecimento em gestão entre matriz e subsidiárias de multinacionais, do saque a um modelo transnacional compartilhado.

Neste contexto vale ler uma matéria da revista “História Viva” de janeiro de 2010 sobre o auge civilizatório do Irã quando do controle aquemênida entre os séculos VI e IV A.C.., a começar especialmente por Ciro o grande. Para ler a matéria completa, clique aqui. Destaco aqui alguns trechos:

Ciro (no trono) liberta os judeus ao conquistar a Babilônia, em 537 a.C.Ilustração de manuscrito do século XV, de Jean Foucquet

Estendendo-se das margens orientais do mar Mediterrâneo e do rio Nilo, no Egito, até o rio Indo, na Índia, o imenso território sob controle aquemênida favorecia o desenvolvimento e a miscigenação das culturas, costumes e religiões, à margem de qualquer tipo de fanatismo. O império englobava quase todas as terras ao redor do mar Negro, o nordeste da Grécia, a Turquia, o Egito (até a primeira catarata do Nilo), a Líbia, todo o Oriente Médio, o norte da península Arábica, a Armênia, o Iraque, o Irã, o Afeganistão e uma parte do Paquistão. Quase 8 milhões de quilômetros quadrados eram administrados pelos reis persas, enquanto o Império Romano ocupou “apenas” 6 milhões de quilômetros quadrados.

A federação de tribos seminômades liderada por Ciro conseguiu se impor sobre os civilizados impérios assírio, babilônio e medo...O rei persa dominou a Mesopotâmia
sem causar muita destruição. Os povos da região, cansados da guerra, das pilhagens dos nômades eurasianos e do fanático militarismo assírio, pouco se opuseram ao que de início lhes pareceu a doce autoridade de um senhor pouco presente, pois governava de muito longe.

Diante desse panorama favorável, Ciro adotou uma inteligente estratégia em relação às elites locais. Ele compreendeu que aterrorizá- las por meio da crueldade e do medo o condenaria no plano político. Era preciso, portanto, federá-las, e não matá-las.
Ciro mostrou ao mundo que o que une importa mais do que o que divide. Seu talento foi criar um sentimento de pertencimento ao império que se disseminou entre o mosaico de povos cuja diversidade os fazia naturalmente propensos ao combate. Os textos mostram que o soberano não queria aniquilar as nações, mas sim associá-las ao destino do império.


Em um reino formado por múltiplas etnias, culturas, religiões e línguas, o governo de Ciro foi muito tolerante com as minorias culturais, religiosas e políticas. O soberano fazia questão de garantir a proteção das populações conquistadas: “Não autorizei ninguém a maltratar o povo nem a destruir a cidade. Ordenei que toda casa permanecesse intacta, que os bens de cada um não fossem pilhados. Ordenei que todos fossem livres para adorar seus deuses. Ordenei que cada um fosse livre em seu pensamento, seu local de residência, sua religião e seus deslocamentos, e ninguém deve perseguir o outro”.


As políticas de Ciro fizeram com que nenhum dos povos conquistados, com exceção dos egípcios, sentisse a autoridade aquemênida como um poder estrangeiro. A administração persa se adaptava às tradições regionais, promovia a descentralização do poder com a implantação de uma ampla autonomia local (os famosos sátrapas), era pautada por uma absoluta tolerância religiosa e se apoiava nas elites locais, privilegiando a pequena nobreza. Para aumentar a coesão do conjunto, o rei e sua corte se deslocavam regularmente pelas províncias do império, passando por Susa, Babilônia, Ecbátana, Arbeles e Persépolis, e fixando sua capital no local onde estivessem residindo provisoriamente.

A tolerância religiosa dos persas foi fundamental para a história do judaísmo. Segundo a Bíblia, ao conquistar a Babilônia, em 537 a.C., Ciro promulgou um édito que libertou os judeus do cativeiro na Mesopotâmia e ofereceu uma ajuda financeira muito substancial para que eles reconstruíssem o Templo de Jerusalém. Ainda hoje, 2.500 mil anos depois, a festa de Purim continua a celebrar, todos os anos, o evento. Desde esse momento, o imperador passou a ser homenageado no mundo judaico como um profeta (Nota minha: é o salvador da Pátria).
Os judeus não foram os únicos a se beneficiar da liberalidade de Ciro. Ele abriu o pensamento persa aos filósofos gregos, à mística masdeísta, ao ascetismo árabe, à medicina indiana e à liberdade de consciência em geral. Os médicos da corte eram majoritariamente estrangeiros.

A tradição de tolerância da antiga Pérsia se perdeu nos séculos posteriores. Os crimes palacianos da dinastia dos Afsharidas, no século XVIII, o reino de terror instituído no Irã pela polícia secreta do xá Rehza Pahlevi na década de 1970 e as perseguições de oponentes políticos promovidas pelo atual presidente Mahmud Ahmadinejad, no entanto, não devem ocultar o legado da Pérsia eterna, com sua imensa tolerância e efervescência cultural.


Assim, tanto para países como para empresas, aprende-se e desenvolve-se mais quando há maior intercâmbio, interação e consideração pelo contexto local, sem deixar de assegurar resultados ou manter a liderança ou o domínio. Aliás, esta também foi uma das conclusões de minha pesquisa e expressão das próprias empresas, ao menos na intenção, ainda que nem sempre efetivada na prática.

Portanto, um modelo de aprendizagem empresarial, em termos organizacionais e gerenciais, passa pelo balanceamento de forças globais e contextuais, unindo as inovações e resultados daquele que gerencia com as competências, valores e contribuições dos que estão sendo gerenciados, formulando uma empresa cujo modelo de gestão é transcendente a empresas e países tomados isoladamente, viabilizando o caráter global e transnacional da organização acima de um mero imperialismo ou expropriação pura e simples.

Américo Ramos é Doutor em Administração, com vinte anos de experiência profissional e acadêmica .E-mail: americodacostaramos@gmail.com. Visite o blog “Aprendizagem e Organização” (http:www.aprendizagemeorganizacao.com).