terça-feira, 7 de setembro de 2010

Torre de Babel, gestão de mudanças e aprendizagem



Tenho feito alguns estudos de casos sobre gestão de aquisições internacionais em empresas brasileiras, entrevistando pessoas tanto das empresas adquirentes como das adquiridas, buscando extrair delas, lições aprendidas e oportunidades de transferência de conhecimento sobre o processo, em termos de suas atividades de gestão.

Há uma rica diversidade de assuntos que podem ser tratados acerca do tema, mas hoje queria destacar um dos principais, um fator crítico de sucesso para uma gestão de aquisição bem-sucedida: a gestão das singularidades intra-organizacionais (cultura, identidade, imagem). Estes conceitos de cultura, identidade e imagem foram sistematizados na abordagem da dinâmica da identidade organizacional de Hatch e Schultz.

Fundamentando-se especialmente no conceito de "Eu" e "Mim" de George Herbert Mead, pensador ligado ao pragmatismo e precursor do interacionismo simbólico, as autoras enfatizam a cultura não como uma variável a ser medida, mas como um contexto, a partir do qual as interpretações da identidade organizacional e as intenções de influenciar a imagem organizacional são formuladas. Portanto, quando a identidade organizacional é expressa, usa-se artefatos culturais para apresentar uma imagem a ser interpretada por outros. Enquanto a imagem projetada é contextualizada pela herança cultural da organização, a interpretação que outros dão a esta projeção é contextualizada por esta cultura.

Deste modo, cultura, identidade e imagem são três partes de um sistema de significados definidores de uma organização. Neste modelo, a cultura estaria na base do “Eu”, com relação à identidade; e a imagem na base do “Mim”, com relação a esta mesma identidade – teríamos aqui a passagem do conceito de identidade individual para o de identidade organizacional. A identidade organizacional, por sua vez, mede a relação entre as imagens dos stakeholders (partes interessadas) e os valores da cultura. A relação entre estes três conceitos se dá por quatro processos distintos: a identidade expressa entendimentos da cultura (expressar); a identidade expressa e deixa impressões nos stakeholders e nos outros em geral (impressionar); a identidade espelha as imagens dos stakeholders e dos outros em geral (espelhar); e a identidade é refletida na cultura (refletir).

Dentro do modelo apresentado, a dinâmica da identidade organizacional pode se tornar disfuncional se a cultura e a imagem se tornarem desassociadas. A primeira disfunção ocorre quando a cultura (“Eu”) se torna superdimensionada, o narcisismo organizacional. Um exemplo típico é a imposição de um sistema de gestão por parte de empresas adquirentes, na crença, consciente ou não, de que este sistema é a melhor solução. A segunda disfunção, por sua vez, ocorre quando a imagem (“Mim”) está superdimensionada, a hiperadaptação organizacional. A opinião dos stakeholders sobrepõe-se à cultura e aos valores da organização. Um exemplo dado foi a imposição, pela cultura do consumo, de determinantes estruturais e processuais às organizações, vulnerabilizando-as à perda de sua cultura.



Quando há uma aquisição, há uma confluência de diferentes culturas, identidades e imagens, ao menos as das empresas adquirente e adquirida. Há vários estudos sobre a descrição de formas como esta confluência se dá: com base em estudos anteriores de outros autores, como Barry, ou Marks (o primeiro, à esquerda) e Mirvis, estas formas podem ser basicamente divididas em algo como captação (assimilação), da adquirida pela adquirente ou mesmo o inverso (quando a AmBev, fusão da Brahma com a Antarctica, foi há alguns anos adquirida pela Inbrew mas manteve a liderança no tocante à gestão), coexistência (construtiva ou destrutiva) e combinação, seja para misturar o existente ou criar algo novo a partir dos elementos pré-existentes.

Na prática, porém, os modelos não se reproduzem sempre de maneira tão bem intencionada. A tarefa chamada pelos consultores empresariais de “Gestão da Mudança” torna-se, muitas vezes, ou algo negligenciado, ou um instrumento alinhado às relações dominantes de poder dentro da “nova” empresa. A gestão da mudança busca o alinhamento de valores e práticas, mas como fazer isso em uma “aldeia” em que convivem diversas “tribos”? Ou, mais do que convivem, estão em uma situação de evidente desigualdade?

Vamos supor que um povo guerreiro (romanos, por exemplo) consegue conquistar outro povo em alguma região da Europa ou Oriente Médio e promete ao seu líder privilégios e apoio em troca de lealdade. Este líder aceita, confia e mobiliza o povo derrotado, que fica mais tranqüilo quando vê seu líder junto a eles. Entretanto, “inesperadamente”, há guerreiros romanos traem e executam aquele líder e alguns de seus seguidores, deixando a população totalmente amedrontada. Nada de novo, não? Mas é o que acontece quando a empresa adquirente mantém numa primeira instância um ou mais gerentes da empresa adquirida, para facilitar a transição em um primeiro momento, e logo em seguida, os demitem, quando, no entendimento daqueles, estão mais atrapalhando do que ajudando. Aí não há “Gestão da Mudança” que resista!

Outro aspecto interessante é que cada uma destas “tribos” fala diferentes “línguas”, aqui expressas em valores e práticas, tanto gerenciais quanto nacionais/regionais. Em um processo de aquisição que estudei, conviviam ao menos seis “tribos”: a dos locais da pequena subsidiária já existente, a dos locais contratados após a incorporação da primeira empresa, a dos locais que trabalhavam nesta primeira empresa, a dos locais que trabalhavam na segunda empresa adquirida, a dos expatriados da matriz e a dos expatriados de uma subsidiária de outro país mas de relevância hierárquica que, de certa forma, rivaliza com a própria matriz. Imaginem pôr todos para uma reunião sobre valores e práticas gerenciais! Como vão se suceder os processos de aprendizagem e de transferência de conhecimento nesta autêntica Torre de Babel gerencial e cultural?

Para se chegar ao céu, ou à sustentabilidade de um empreendimento como a gestão de aquisições, ainda mais de aquisições sucessivas, há de se conhecer os vários “idiomas” envolvidos, sob pena de se fracassar. São muitas as “tribos” e a transformação conjunta de suas singularidades na direção de uma singularidade nova requer um esforço de aprendizagem e conhecimento mútuo bastante grande. Assim como ‘Deus” puniu os homens por quererem alcançar o céu a partir de poderes unilaterais, fazendo valer as diferenças nos idiomas, o fenômeno gerencial impede uma gestão de aquisição totalmente ao bel prazer de interesses específicos de um grupo, mesmo que dominante, ignorando totalmente (alguns ou muitos atacam ou desprezam, mas sem ignorar) a diversidade gerencial e cultural existente.

Não há evolução e transformação sem aprendizagem na diversidade: do contrário há confusão, ou seja, babel, ou seja, "babou".

Américo Ramos , DSc em Administração,
vinte anos de experiência profissional e acadêmica.
E-mail: americodacostaramos@gmail.com.
Visite o blog Aprendizagem e Organização”
(http:www.aprendizagemeorganizacao.com).


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