quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Conhecimento transferido e conduzido, ou refratado e induzido?



Américo Ramos, DSc. em Administração, vinte anos de experiência profissional e acadêmica.
E-mail: americodacostaramos@gmail.com

Visite o blog Aprendizagem e Organização (http://www.aprendizagemeorganizacao.com)



Lembrando as aulas de física, há refração quando dois meios transparentes pelos quais passa um feixe de luz têm diferentes índices de refração, que é uma relação entre a velocidade da luz no vácuo (c) e a velocidade da luz no meio em consideração. A luz, desta forma, apresenta, aos olhos do observador, uma descontinuidade.


Por sua vez, é muito antiga a associação existente entre luz e conhecimento, associação esta bem anterior ao movimento iluminista, por exemplo. Entretanto, é sabido que o conhecimento nunca “circula” da mesma forma no nível pessoal, ao contrário do que ocorre no nível impessoal.


Nonaka e Takeuchi

O conhecimento impessoal é como uma luz propagando-se no vácuo, que permanece com a mesma velocidade, sem refrações: é um conhecimento com a mesma visualização, como o conhecimento explícito, conceito disseminado por Nonaka e Tageuchi (1997) em seu livro “Criação do Conhecimento na Empresa”, a partir de um conceito de Michael Polanyi (PRUSAK, 1997).


Já o conhecimento pessoal pode ser comparado à luz referatada: o conhecimento muda de visualização ou conformação a depender da pessoa que a está apreendendo, segundo seus valores, conceitos e experiência de vida. Algo como o conhecimento tácito, seguindo a mesma referência do parágrafo anterior. Isto também é válido para a transferência de conhecimento entre pessoas (socialização): o conhecimento pessoal, tácito, de cada um, sofrerá mutações segundo a individualidade destes.


Pode ser aplicado o mesmo conceito para organizações, que apreenderá o conhecimento segundo sua trajetória, seus valores, sua cultura, suas práticas, aspectos locais, entre outros aspectos que conformam sua singularidade. Assim, ainda, a transferência de conhecimento entre organizações, como entre matriz e subsidiárias, ou entre empresa adquirente e adquirida, se dará segundo estas singularidades, modificando o conhecimento.


Exemplificando com a transferência de conhecimento gerencial promovida por multinacionais (ver, por exemplo, minha tese de doutorado), a dicotomia entre aspectos globais, como sistemas padronizados ou modismos gerenciais, por exemplo, e aspectos contextuais, expressa por peculiaridades do país onde a unidade em questão atua e da própria organização em particular, pode ser descrita, segundo a metáfora da refração, como a propagação do conhecimento/luz pelo vácuo, configurando as soluções universalistas da gestão (continuidade óptica, segundo a Física, e continuidade gerencial, dentro desta analogia) ou a propagação por e entre diferentes meios culturais/organizacionais/gerenciais, levando a uma absorção e utilização diversa de acordo com cada unidade e respectiva singularidade.


Assim, não há transferência perfeita de conhecimento, pois as organizações são meios refratáveis imersas em sociedades também refratáveis. Mesmo quando há propagação no vácuo universalista e padronizador, as peculiaridades continuarão de alguma forma.


Logo, não existirá uma “organização vácuo”, na qual o conhecimento passa sem a menor resistência, mantendo a mesma conformação explícita de seu agente. Igualmente não existirá também uma “organização espelho” pura, que não deixa passar nenhuma luz/conhecimento, refletindo-a/o.


Este conceito pode ser associado a outro, também discutido em minha tese, que é o de acoplamento estrutural, ligado à autopoiesis.


Maturana

Autopoiesis significa autoprodução (MARIOTTI, 2000). Esta perspectiva foi bastante popularizada pelo trabalho desenvolvido por dois cientistas chilenos: Humberto Maturana e Francisco Varela. Dentro da perspectiva da teoria de sistemas, seus estudos apontaram, porém, para a idéia de que todos os sistemas vivos são organizacionalmente fechados, ainda que não isolados: a visão de sistema aberto seria a tentativa de dar um significado a estes sistemas pelo ponto de vista de um observador externo (Von KROGH; ROOS, 1995; MATURANA; VARELA, 2005; MARIOTTI, 2000; MORGAN, 1996).

Varela

Segundo Maturana e Varela (2005) a organização autopoiética está vinculada a uma fenomenologia biológica, onde os seres vivos produzem-se a si mesmos continuamente em uma rede de interações. A autopoiesis é o que produz a autonomia dos seres vivos, enquanto sistemas. A estrutura de uma unidade é sujeito de uma ontogenia – história de mudanças na estrutura de uma unidade de forma a não haver perda de sua organização específica. Meio e unidade sofrem “mudanças estruturais mútuas e concordantes” (MATURANA; VARELA, 2005, p. 87), o chamado acoplamento estrutural, cuja expressão traduz-se na aprendizagem.


A linguagem, como fenômeno social, opera no acoplamento estrutural entre indivíduos. Igualmente as práticas e tecnologias de gestão, que constituem-se na linguagem gerencial.


Por sua vez, a utilização do conceito de refração em organizações foi usada por outros autores, como Riggs (1964), em seus estudos sobre a aplicação de modelos de administração pública no mundo, embora não exatamente do jeito comentado aqui.


Pessoas e organizações, portanto, tendem a refratar o conhecimento externo, amoldando-o internamente. A transferência tem, como isso, natureza indutiva e não simplesmente condutiva: opera em campos gerados por cada organização segundo suas características intrínsecas (trajetória histórica da organização) e extrínsecas (regionais, nacionais). Algo a se lembrar sempre na hora de analisar os pacotes de consultoria quando prometem transferências rápidas e diretas: não estamos no vácuo.


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