sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Nunca te vi, sempre contigo aprendi?

Américo Ramos



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É sabido que, por exemplo, Pitágoras, Buda, Confúcio, Sócrates, Amônio Saccas, entre outros, passavam seus ensinamentos, ao menos preponderantemente, pela via oral. Coube a seus discípulos, diretos, ou indiretos, posteriormente registrarem os conhecimentos transmitidos. O mesmo ocorreu no Cristianismo.

Além disso, era prática corrente nas academias gregas da antiguidade o conhecimento ser transmitido por meio de diálogos, caminhadas (ser peripatético), reflexões compartilhadas oralmente.

Independentemente da alegação do caráter reservado que estes conhecimentos teriam, além do fato trivial de que não existia a imprensa (pelos registros históricos existentes) e a disseminação escrita não podia ser feita em maior escala, parece também que o entendimento do que era o conhecimento passava pela sua indução no outro (ver postagem anterior “conhecimento transferido e conduzido, ou refratado e induzido?” ) por meio de reflexões compartilhadas, ou por infusão, como um sache de chá, se for tomado Tomás de Aquino como referência. O registro escrito não teria este mesmo poder, esta transformação interior, este caráter pessoal, seria uma mera informação. Logo, isto poderia fundamentar a superioridade do conhecimento tácito, vinculado à experiência pessoal, sobre o conhecimento explícito, como deflagrador de processos de aprendizagem. Afinal, a palavra falada acelera muito mais a aprendizagem do que a escrita, esta tem que ser digerida mais lentamente, não há interação, e a falta de vivência implica um risco muito maior de esquecimento, ou de mera memorização. Eu, como professor ou palestrante, se me sinto à vontade em um assunto, tenho os registros mais como um roteiro, mas caso contrário, corro o risco de ser bem mais artificial no que falo e tenho os meus escritos, neste caso, como bem mais do que um roteiro.

Entretanto, não se imagina que a transmissão do conhecimento tenha se dado com tamanha desenvoltura até os dias de hoje sem a palavra escrita, sem a transmissão, armazenamento e recuperação de conhecimento explícito, sem o upload e o download. Saber-se-ia tanto sobre o legado de Pitágoras, Sócrates e outros, não fosse o registro? Ou ainda, o registro permite massificar o exotérico, mas não o esotérico, reservado para os “iniciados” que de fato incorporam a palavra de seus mestres ao seu conhecimento pessoal (ver a diferença entre as duas palavras aqui)?




Poderia ser alegado também que a transmissão oral de conhecimento, principalmente ao longo do tempo, seria facilmente deturpável. Todavia, a palavra escrita tem tal garantia? Há tantos exemplos de deturpações dos escritos antigos, de quantos pontos foram acrescentados ou retirados aos contos! Além disso, talvez os antigos defensores da transmissão oral quisessem expressar que o conhecimento pode ser em essência um só, mas se materializa na pessoa em sua experiência, não sendo propriedade em si mesma. Estaria relacionado ao que Michael Polanyi, inspirador da Gestão do Conhecimento propulsionada por Nonaka e Tageuchi (ver postagem anterior “conhecimento transferido e conduzido, ou refratado e induzido?”) e consumida pelo Mundo Corporativo, reforçou em termos do Conhecimento Pessoal, algo construído socialmente pelos indivíduos em seu contexto ambiente e que abrange ainda aspectos emocionais, constituindo-se em uma experiência ativa e intencional.

Com relação ao jogo nem sempre transparente entre o oral, o escrito e a transmissão de conhecimento, há ainda os rituais como forma de “fixação”. Os rituais surgem como representações não escritas, depois são registrados, padronizados, entronizados, congelados, e no final, muito pouco a grande maioria termina por saber sobre eles. Se a transmissão fosse mais direta, entrando na alma do receptor como uma vacina na corrente sanguínea (aliás, é interessante saber que Miguel Servet vinculava a alma ao sangue, assim como já era dito no Levítico, terceiro livro do Pentateuco bíblico, 17/11: porque a alma da carne está no sangue), seria melhor?

Ainda sobre o falar e o escrever, admiro aqueles que “falam como se estivessem escrevendo”, ou melhor, que colocam em seu discurso de forma natural e sem interrupções o que faria de forma escrita, parando, analisando, verificando. Claro que quem discorre de tal forma tem um raciocínio muito mais apurado e aprofundado e, caso tenha a habilidade de passar sua mensagem a públicos de diferentes estágios de compreensão, com o domínio absoluto das possibilidades que este conhecimento encerra. Algo como a passagem dos evangelhos em que Jesus estabelece junto a seus discípulos a diferença entre as parábolas que conta ao povo e as explicações mais diretas que lhes dava reservadamente (Mc 4, 33,34).

Ora, parece que há espaço para os dois tipos de conhecimento. Em tudo que se refere à técnica, supõe-se que o conhecimento explícito é indispensável como receptáculo de idéias e realizações, ainda que a habilidade do artífice, seja de que natureza for, venha a ser burilada pela experiência pessoal. Já no mundo das idéias, seja na filosofia, política, cultura, educação e na prática da liderança e de transmissão de conhecimento gerencial, talvez o conhecimento pessoal e a transmissão oral seja algo a ser mais resgatado e reforçado.

Reconhece-se que o mundo corporativo não ignora isto atualmente. Tem-se as tutorias, os feedbacks e feedforwards, as comunidades de práticas, todas de alguma forma valorizando o conhecimento e aprendizagem pela interação. Ah, não pode ser esquecida a prática de lições aprendidas, que é uma maneira interessante, se bem feita, de explicitar, parcialmente, é forçoso reconhecer, o conhecimento tácito apreendido de experiências diversas.

Além disso, a era pós-internet e redes sociais (vejam o filme sobre o assunto que irá estrear nos cinemas brasileiros em dezembro no qual se diz – quem diria? – que um brasileiro foi enganado por um americano ) tem trazido uma forma bem diferente de se buscar e disseminar conhecimento ... mas há quem diga o contrário!

Em entrevista disponibilizada recentemente, o professor Thomas Pettitt, professor de história da cultura na Universidade do Sul da Dinamarca, defende que as novas mídias levam a humanidade de volta a era pré-Gutemberg, da cultura oral (leia aqui). “E como se estivéssemos falando pelos dedos”, diz o professor. È que o repositório de conhecimento deixou de ser algo estático e passou a ser facilmente rastreável, discutível, interativo, com a era digital. A linguagem passa a ser mais próxima da palavra. Conversamos por chat ou por imagens de qualquer lugar do mundo, como se próximos estivéssemos. Assim, por um exercício de imaginação, conceber-se-ia uma Academia de Platão, o Liceu de Aristóteles, a Academia Neoplatônica de Alexandria, virtuais? Aristóteles, que gostava de ensinar pelo modo peripatético, caminhando com seus discípulos enquanto discorria sobre as mais variadas idéias, poderia hoje usar o ”Second Life”?

Por outro lado, Dominique Wolton, Sociólogo da comunicação e diretor do Centro Nacional de Pesquisa Científica (Paris), deu também uma entrevista, divulgada na mesma época do que a anterior, em que considera as redes sociais uma forma de comunicação muito frágil com relação à coesão social, pois falta às pessoas se encontrarem fisicamente: “aí reside toda a grandeza e dificuldade da comunicação para o ser humano ... podemos passar horas, dias na internet e sermos incapazes de ter uma verdadeira relação humana com quer que seja”. É o que ele chama de “solidão interativa”. Assim, a interação verdadeira não seria a da internet, não seria aquela que desperta emoções genuínas, e com isso, viabilizar o conhecimento pessoal do qual falava Polanyi.

Bom, penso que as questões, a princípio contraditórias, levantadas pelos dois pensadores citados, não a são, se melhor examinadas. Até há bem pouco tempo atrás, a transmissão oral e mesmo o contato visual eram intrinsecamente ligados à aprendizagem e à indução de conhecimento pessoal. Hoje não é mais. O desenvolvimento das tecnologias de informação e de comunicação mudou dramaticamente este quadro. Assim, pode haver transmissão direta, oral inclusive, e mesmo contato visual remoto, sem necessariamente garantir a possibilidade de um aprendizado e indução de conhecimento pessoal. Ponho em dúvida ainda esta questão, pois não quero afirmar uma impossibilidade, já que caberia aqui uma continuidade de raciocínio que ainda não foi amadurecida suficientemente.Me veio agora a lembrança do filme Nunca te vi sempre te amei, que mostra como o afeto e a amizade podem se desenvolver genuinamente em uma época em que apenas (?) havia cartas, sem as pressões pelas abreviações e limites de 140 caracteres. Meu sobrinho conheceu sua atual esposa pela internet. E nem toquei diretamente nos internet affairs, ou cursos à distância e por satélite ... mesmo com os tutores .

No final das contas, nesse mundo informatizado, está faltando resgatar algo mais da transmissão direta do conhecimento. Desenvolver o explícito foi o mais fácil, mas com a conseqüência de uma hipertrofia desta modalidade de conhecimento como transmissão, o que é um erro, que, como se viu aqui, pode ser evidenciado pela própria história da humanidade e de seu pensamento. Desde há algum tempo há de se partir para a construção de um conhecimento pessoal e aprendizagem interativa baseada em paradigmas que transcendam distâncias e olhares. Será isto possível? Um desafio? Ainda assim, não se pode perder de vista o mais simples e, ao mesmo tempo, o mais complexo: a interação humana em todos os seus sentidos.



http://www.consciencia.net/internet-e-politica/

Américo Ramos, DSc em Administração
E-mail: americodacostaramos@gmail.com
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