domingo, 7 de novembro de 2010

Burocratas, fariseus organizacionais e aprendizagem limitada







































Américo Ramos


“Mas ai de vós, fariseus! Porque dais o dízimo da hortelã, da arruda e de todas as hortaliças e desprezais a justiça e o amor de Deus; devíeis, porém, fazer estas coisas, sem omitir aquelas” (Lc, 11-42)

“Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! Porque dais o dízimo da hortelã, do entro e do cominho, e tendes negligenciado os preceitos mais importantes da lei, a justiça, a misericórdia e a fé; deveríeis fazer estas coisas, sem omitir aquelas” (MT 23-23)

Dentro da tradição cristã, os fariseus eram criticados por se aferrarem à observância de preceitos e rituais e censurarem o que não estava em conformidade a isto, mesmo que fosse para a prática da virtude, da salvação, enfim, do bem. Dominavam o conhecimento procedimental, mas afastavam-se da essência.

Nota-se que no trecho que destaquei aqui do evangelho, seja de Mateus como de Lucas, que Jesus não deixava de reconhecer a execução dos rituais e procedimentos já consagrados, desde que não se esquecessem da essência pela qual foram elaborados e são sua finalidade.

O que me veio à mente então? A crítica à burocracia nas organizações, não à burocracia em si, mas às suas disfunções, quando os “meios são mais importantes que os fins”. Mesmo porque, sem burocracia, em seu conceito, uma organização perde a sua memória, o seu conhecimento, e inutiliza sua capacidade de aprendizagem. É como se, para usar um exemplo clássico, tivéssemos que reaprender diariamente nossas rotinas mais banais (“até nas coisas mais banais”, como diria Cazuza), como escovar os dentes. Imagine uma organização como no filme “Amnésia” . Uma resenha do filme por Norma Cortês, historiadora e doutora pela IUPERJ, pode ser lida aqui.

O termo “burocracia”, dentro das teorias de ciências sociais e das organizações, tem como propulsor principal Max Weber e cujos insights foram tomados por outros cientistas sociais, décadas depois, destacando-se, aqui, Robert K. Merton.

Para uma explicação, ou recordação (para quem estudou Administração) da teoria da burocracia, o site da Wikipédia dá uma primeira idéia. Destacam-se aqui as disfunções da burocracia enunciadas por Merton.

Assim, os ditos burocratas, são aqueles que se proclamam defensores das normas organizacionais, mas na verdade são agentes das disfunções acima citadas. Assim, vêem a forma da norma acima de sua essência e finalidade. É preciso seguir as normas e procedimentos, sem jamais esquecer as finalidades para as quais foram criados dentro da organização, bem como seus resultados, seus valores, sua missão etc. Assim, esses burocratas são fariseus organizacionais.

Quando tive a idéia para postar este artigo, lembrei-me de um texto de uns dez anos atrás, publicado na revista Exame e escrito por uns dos pensadores brasileiros em Administração mais brilhantes e mediáticos que nós temos, o Thomaz Wood Jr., em que dissertava justamente sobre a necessidade da burocracia, apesar de seus problemas, com o sugestivo título “A burocracia está morta: viva a burocracia!"

Wood Jr. aproveita para inserir a problemática da ISO 9000, bem mais ardente na época, como o retorno do “monstro burocrático”, que junto com os sistemas integrados de gestão, espalham “controles e procedimentos por toda a empresa” e gerando “vítimas” com o “engessamento” da organização à custa de uma “futura utilização em campanhas promocionais”.

Aliás, durante as revisões da ISO 9000, pretendeu-se, inclusive, resgatar a essência da qualidade, evitando-se a preocupação excessiva com a forma, pelo menos pareceu ser esta a intenção. Um auditor da ISO 9000 mais policialesco e formal é um típico fariseu no sentido pejorativo que se deu conhecimento, pois mantinha alerta sobre qualquer não conformidade, considerando-o uma espécie de pecado ainda que esta não conformidade pudesse estar resolvendo algum problema organizacional. Empregados cumpriam procedimentos sem saber para que serviam, como fiéis que enunciam orações e rituais sem saber porque estão fazendo isto.

Voltando, agora à aprendizagem. A burocracia é um meio de consolidar o conhecimento explícito e a aprendizagem, sim, desde que tenha como parâmetro os objetivos e o desenvolvimento da organização, em prol de sua sustentabilidade com o tempo, em termos de desempenho, valor e sinergia (ver meu artigo “A dimensão biopsicossocial na acumulação de riqueza, no progresso técnico e na construção social das organizações”). A diferença entre a aprendizagem em uma organização burocrática disfuncional e a que não é corresponde à diferença entre a aprendizagem de primeiro ciclo, mais limitada e restrita, e de segundo ciclo, mais questionadora e inovadora, conforme cunhado por autores como, por exemplo, Argyris e Schon, e já tratado em outras postagens, como em Saúde e estética: como no indivíduo, entre a sustentabilidade e a imagem.


Chamo a atenção também para uma questão levantada por um pensador organizacional americano dos mais destacados, Karl Weick. Em parceria com Westley, afirmou que a aprendizagem organizacional é um oximoro, pois se “aprender é desorganizar e aumentar a variedade”, “organizar é esquecer e reduzir a variedade”. Discorrer sobre a aprendizagem organizacional se torna viável caso sejam associadas as organizações a culturas (linguagem, artefatos e rotinas de ação). A linguagem é vista como instrumento e repositório da aprendizagem, que ocorre via interação social.

A aprendizagem é entendida por Weick e Wesley como uma evidência da experiência contínua, conectando ordem e desordem e permitindo que a organização e sua identidade mudem a partir das inovações trazidas pelos questionamentos inerentes ao processo de aprendizagem. Assim, “afirmar o oximoro da aprendizagem organizacional é manter a organização e a aprendizagem conectadas, a despeito de se moverem em direções opostas” (WEICK; WESLEY, 1998, p. 385).

Manter a organização e a aprendizagem conectadas e permitir a mudança e inovação representam dar um sentido ativo à própria burocracia nas organizações. Assim, seus agentes usarão as regras e procedimentos tendo em vista a essência organizacional em interação constante com suas circunstâncias, parafraseando Ortega y Gasset e sua frase "O homem é o homem e a sua circunstância". Mas é importante notar que Ortega Y Gasset frisa que “é, pois, falso dizer que na vida «decidem as circunstâncias». Pelo contrário: as circunstâncias são o dilema, sempre novo, ante o qual temos de nos decidir. Mas quem decide é o nosso caráter” (ver aqui). A burocracia, mudando ou não, rodeia as organizações como circunstâncias, mas quem decide são as pessoas e seu caráter para discernir o que é mais correto à organização, e este “caráter” coletivo é formado por um contínuo e denso processo de aprendizagem.

Américo Ramos , DSc em Administração.
E-mail: americodacostaramos@gmail.com.
Visite o blog Aprendizagem e Organização”
(http:www.aprendizagemeorganizacao.com).

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