quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Nowhere mass-man



Américo Ramos






Em postagem anterior comentei sobre o homem-massa de Ortega Y Gasset. Eis o que ele diz a respeito em uma de suas obras, "A Rebelião das Massas":

Massa é todo aquele que não se valoriza a si mesmo - no bem ou no mal - por razões especiais, mas que se sente "como todo o mundo", e, entretanto, não se angustia, sente-se à vontade ao sentir-se idêntico aos demais. ... A massa atropela tudo que é diferente, egrégio, individual, qualificado e seleto. Quem não seja como todo o mundo, quem não pense como todo o mundo, corre o risco de ser eliminado. E claro está que esse "todo o mundo" não é "todo o mundo". "Todo o mundo" era, normalmente, a unidade complexa de massa e minorias discrepantes, especiais. Agora todo o mundo é só a massa... O homem-massa é o homem cuja vida carece de projeto e caminha ao acaso. Por isso não constrói nada, ainda que suas possibilidades, seus poderes, sejam enormes.

Numa boa ordenação das coisas públicas, a massa é o que não atua por si mesma. Tal é a sua missão. Veio ao mundo para ser dirigida, influída, representada, organizada - até para deixar de ser massa, ou, pelo menos, aspirar a isso.

Pretender a massa atuar por si mesma é, pois, rebelar-se contra seu próprio destino, e como isso é o que faz agora, falo eu da rebelião das massas. Porque no final das contas a única coisa que substancialmente e com verdade pode chamar-se é a que consiste em não aceitar cada qual seu destino, em rebelar-se contra si mesmo.

Assim, o homem-massa é basicamente o que não pensa por si mesmo, é basicamente um manipulado. Algo bem conhecido da história das sociedades, sem necessidade de muitas dissecações. Não tem metas, planos, valores próprios. Na sociedade de mercado global, então, a potencialização é explícita e expressiva. Escolhem nossa comida, nossa estética, nossa ética, nossa razão, emoção e fé. Nas organizações, a mesma coisa: escolhem os parâmetros considerados corretos para o melhor desempenho das organizações, dentro do pentagrama satisfação-competência-método-cliente-resultado. Aprende-se o que estiver de acordo com o pentagrama e a ética de mercado que ordena nossos juízos, razão e prática (data vênia, Kant). Apesar do discurso em contrário do mundo corporativo, em que os diferentes são bem-vindos, ainda há muito o que se caminhar para que os que pensam diferentemente da “base aliada” não sejam eliminados, se não de fato, conduzidos ao ostracismo e à indiferença, caso estes assim o permitam.

O pensamento expresso por Ortega y Gasset não é algo isolado, sendo desenvolvido antes e depois dele. O professor de Filosofia Renato Bittencourt faz a associação com o “Filisteu da Cultura”, de Nietzche, de cujo artigo na revista Filosofia (Ciência e Vida) nº 52 destaquei o seguinte trecho a respeito:

Encontramos no "filisteu da cultura" um dos principais avatares do "homem-massa" tal como delineado por Ortega y Gasset em A Rebelião das Massas. O "filisteu da cultura", conceito criado pela intelligentsia alemã do período oitocentista e analisado filosoficamente por Nietzsche na sua Primeira Consideração Intempestiva, se satisfaz plenamente com o cotidiano da vida privada pacata e confortável, não sendo capaz de estabelecer para si próprio a realização de quaisquer tipos de projetos superiores, mas apenas propostas práticas passíveis de ser contabilizadas em melhorias para a sua vida privada imediata. Ao "filisteu da cultura" nada mais interessa do que cumprir as determinações burocráticas que lhe são impostas pelo meio social e, realizando tal intento, poder dormir placidamente sobre os louros da vitória.

O desenvolvimento da indústria promoveu a inserção cada vez mais vertiginosa dos bens culturais no sistema de mercado, promovendo assim a vulgarização da arte e das realizações culturais. Podemos afirmar que o maior malefício cultural promovido pela obtusidade intelectual e existencial do tipo "filisteu" ocorre quando ele detém o poder sobre as instituições artísticas e educacionais, pois essas organizações passam a ser gerenciadas pela óptica do lucro imediato e da comercialização das realizações culturais, que se tornam assim meros objetos consumíveis e, por conseguinte, descartáveis. Esse dispositivo comerciário, incompatível com o florescimento autêntico da vida cultural, se manifesta até mesmo na mercantilização do ensino pela especulação empresarial.

E na própria cultura pop temos ecos, intencionais ou não, desta idéia. Um exemplo está na parte inicial do filme Tempos Modernos de Charles Chaplin (a cena das ovelhas e sua comparação com os operários saindo de uma fábrica). Outro exemplo, em cima do qual vou detalhar um pouco mais, refere-se a uma das músicas dos Beatles, mais especificamente de John Lennon, de que mais gosto, Nowhere Man, composta para o importante e inovador na época álbum intitulado Rubber Soul (1965), um álbum de transição para uma fase mais aprofundada e madura dos “rapazes de Liverpool”. A seguir, a letra e a tradução:


Nowhere Man


He´s a real nowhere man

Sitting in his nowhere land,

Making all his nowhere plans

for nobody.

Doesn't have a point of view,

Knows not where he's going to,

Isn't he a bit like you and me?

Nowhere man, please listen,

You don't know what you're missing,

Nowhere man, the world is at your command.

He's as blind as he can be,

Just sees what he wants to see,

Nowhere man can you see me at all?

Nowhere man, don't worry,

Take your time, don't hurry,

Leave it all 'till somebody else

Lends you a hand.

Doesn't have a point of view,

Knows not where he's going to,

Isn't he a bit like you and me?

Nowhere man, please listen,

You don't know what you're missing,

Nowhere man, the world is at your command.

He's a real nowhere man,

Sitting in his nowhere land,

Making all his nowhere plans

For nobody.

Making all his nowhere plans

for nobody.

Making all his nowhere plans

For nobody.


Homem de Lugar Nenhum



Ele é um autêntico Homem de Lugar Nenhum

Sentado em sua terra de lugar nenhum

Fazendo todos os seus planos inexistentes

Para ninguém.

Não tem uma opinião,

Não sabe para onde está indo

Ele não é um pouco parecido com você e eu?

Homem de Lugar Nenhum, por favor escute,

Você não sabe o que está perdendo

Homem de Lugar Nenhum, o mundo está sob o seu comando.

Ele é tão cego quanto deseja ser,

Só vê o que quer vê,

Homem de Lugar Nenhum consegues ver-me?

Homem de lugar nenhum, não se preocupe,

Pegue teu tempo, não tenhas pressa,

Deixa tudo até que alguém

Te dê uma ajuda

Não tem opiniões

Não sabe para onde está indo

Ele não é um pouco parecido com você e eu?

Homem de Lugar Nenhum, por favor escute,

Você não sabe o que está perdendo,

Homem de Lugar Nenhum, o mundo está sob o seu comando.

Ele é um autêntico Homem de Lugar Nenhum,

Sentado em sua terra de lugar nenhum,

Fazendo todos os seus planos inexistentes

Para ninguém.

Fazendo todos os seus planos inexistentes

Para ninguém.

Fazendo todos os seus planos inexistentes

Para ninguém.


Observa-se em uma das estrofes a expressão "o mundo está sob o seu comando". A rebelião é possível, se partir-se do interno de cada um, como já dizia Ortega Y Gasset.

Isto dito, cabe refletir sobre a proximidade dos conceitos de Organização de Aprendizagem e “Organização Crítica”. Não quero aqui relacionar isto diretamente aos Estudos Organizacionais Críticos, pois entraria em uma seara em que não quero entrar aqui (para quem quiser saber mais academicamente sobre o assunto, ver aqui). O quero aqui dizer é que, ao lado da busca tomasiana do conhecimento (a ser aprofundado na próxima postagem), cabe a disposição crítica da inteligência e, a partir da analogia que já fazia Sócrates entre indivíduos e sociedades, fazendo eu entre indivíduos e organizações, uma organização que tenha a aprendizagem como meta programática precisa também de inserir em sua cultura a disposição crítica, para que esta mesma cultura, que vier a ser arvorada como uma “cultura de aprendizagem”, não venha a ser reduzida para uma cultura meramente ideologizante, sustentada pela lógica do homem-massa sentado em sua organização de lugar nenhum. E para que isto frutifique, talvez tenham que ser reconciliados conceitos possivelmente irreconciliáveis, o de organização e o de emancipação. Este pode ser o desafio de uma nova organização em uma nova sociedade, em que se afirme uma identidade renovada.

Sem mais por ora, deixo os leitores com os Beatles. E ainda, para não dizer que os nacionais também não refletem sobre estes assuntos, José Ramalho e “Admirável Gado Novo”, composto no contexto histórico do final dos anos setenta no Brasil, uma época de transição política.




Beatles Nowhere ManEnviado por Okdude81. - Veja mais vídeos de música, em HD!













Vocês que fazem parte dessa massa

Que passa nos projetos do futuro

É duro tanto ter que caminhar

E dar muito mais do que receber

E ter que demonstrar sua coragem

À margem do que possa parecer

E ver que toda essa engrenagem

Já sente a ferrugem lhe comer

Êh, oô, vida de gado

Povo marcado

Êh, povo feliz!

Lá fora faz um tempo confortável

A vigilância cuida do normal

Os automóveis ouvem a notícia

Os homens a publicam no jornal

E correm através da madrugada

A única velhice que chegou

Demoram-se na beira da estrada

E passam a contar o que sobrou!

Êh, oô, vida de gado

Povo marcado

Êh, povo feliz!

O povo foge da ignorância

Apesar de viver tão perto dela

E sonham com melhores tempos idos

Contemplam esta vida numa cela

Esperam nova possibilidade

De verem esse mundo se acabar

A arca de Noé, o dirigível,

Não voam, nem se pode flutuar

Êh, oô, vida de gado

Povo marcado

Êh, povo feliz!


A



Américo Ramos , DSc em Administração,
vinte anos de experiência profissional e acadêmica.
E-mail: americodacostaramos@gmail.com.
Visite o blog Aprendizagem e Organização”
(http:www.aprendizagemeorganizacao.com).

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