sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Sou de lugar nenhum?

Américo Ramos



Outro dia ouvi novamente uma antiga música dos Titãs, Lugar nenhum. A seguir, a letra:

Composição: Arnaldo Antunes / Tony Bellotto / Marcelo Fromer / Sérgio Britto / Charles Gavin

Não sou brasileiro,

Não sou estrangeiro,

Não sou brasileiro,

Não sou estrangeiro.

Não sou de nenhum lugar,

Sou de lugar nenhum.

Não sou de São Paulo, não sou japonês.

Não sou carioca, não sou português.

Não sou de Brasília, não sou do Brasil.

Nenhuma pátria me pariu.

Eu não tô nem aí.

Eu não tô nem aqui.

O próprio Arnaldo Antunes conta sobre esta sua percepção, diga-se, cosmopolita, e atribui isto ao fato de viver em São Paulo.

Nesta onda contemporânea de globalização, aplicada ao mundo corporativo, vê-se muito esta percepção cosmopolita. Os padrões do dito mundo desenvolvido espalham-se cada vez mais pelo restante do mundo, emergente ou não, em especial em suas elites e classe média aspirante à emergência. As grandes marcas e "instituições" globais, dos shoppings ao Facebook (sobre Facebook, esta notícia aqui daria uma outra postagem), formam a linguagem da sociedade contemporânea mais instruída.

Fica então a discussão se se vive ou não em uma cultura global. O debate é longo e não vou reproduzi-lo aqui. Recordo duas questões polêmicas. Uma, a de que o global reflete a lei do mais forte (assim como Trasímaco falava sobre justiça para Sócrates, para quem, inclusive, perdeu a discussão). A outra costuma contra-argumentar à hipótese da cultura global algo como a lei de ação e reação: a cada ação global (sem trocadilho com aquele movimento de uma famosa rede de televisão em um país sul-americano) corresponde a uma reação local (nossos carros da Ford, Volkswagen ou Fiat têm um tempero local que é, inclusive, exportado para outros países).

Sobre o cosmopolitismo, não é nada de novo, claro. Os jovens da elite cafeeira paulista, por exemplo, parecem ter sido inspiradores do paulistano Arnaldo Antunes, tendo em base o seu próprio depoimento: viviam na Europa, falavam francês ou inglês, moravam lá um tempo, sentiam-se cidadãos do mundo. Ao mesmo tempo, sentiam-se algo em débito com as raízes nacionais, rejeitando-as e resgatando-as ao mesmo tempo. Um dos chamados “intérpretes do Brasil” foi um cosmopolita desta elite, incentivador do movimento modernista de 1922 (cuja idéia, dizem, teve matriz francesa/ http://pt.wikipedia.org/wiki/Marinette_Prado), Paulo Prado, em sua obra “Retrato do Brasil. No mundo corporativo brasileiro, em que a codificação do “management” entrou com toda a força nas últimas três décadas, associada à maior abertura com o mercado internacional, fez-se consolidar no Brasil a figura do profissional global, o que transita por vários lugares do mundo, algo mais comum em países centrais já há algum tempo.

Vale citar também uma consideração de Ulf Hannerz, antropólogo sueco estudioso das questões da globalização em seu texto “Cosmopolitas e Locais na Cultura Global”, para a maioria dos cosmopolitas, os demais, de seu país de origem ou não, são quase todos locais e, ficam algo entediados e deslocados se passam a viver a vida de antes do cosmopolitismo.

Não sei se este cosmopolitismo chega a ser tão generalizável, ou se há também, por paradoxal que talvez possa parecer, um filtro cultural do próprio Hannerz, que como escandinavo respira cosmopolitismo e anglicização há um bom tempo. Afinal, quem domina considera local aquilo que não reflete suas práticas. Os antigos gregos, helenistas ou romanos chamariam estes “locais” de bárbaros. Então a globalização reflete este domínio, ainda que possa engendrar a chave para a "desidentificação" do próprio dominador (vide a queda do próprio império romano e os recentes acontecimentos migratórios na Europa e Estados Unidos).

Indo por este caminho, para Boaventura Santos, eminente sociólogo português, a globalização pressupõe dialeticamente a localização: o global designa como local outra prática, identidade, entidade. Em função disso, propõe quatro formas de globalização: localismo globalizado, caso da atividade das multinacionais; o globalismo localizado, referente ao impacto de práticas transnacionais no nível local (ex: dumping ecológico, etnicização do local de trabalho, destruição de recursos naturais para pagamento de dívida externa), o cosmopolitismo (organizações transnacionais defendendo interesses comuns como no caso dos direitos humanos) e temas ligados ao patrimônio comum da humanidade, como a proteção da camada de ozônio.

O cosmopolitismo, como qualquer ação humana, requer aprendizagem. O brasileiro letrado foi formado por uma cultura de origem greco-romana e judaico-cristã, com contornos atuais mais anglo-americanos, e vai reproduzir esta cultura em suas realizações, aspirações e formas de ver o mundo. Por extensão, o mesmo deve ser dito quanto ao cosmopolitismo corporativo. Neste último caso, isto fica mais evidente com o conhecido e disseminado jargão popularizado pelas escolas de administração, com base no “código” americano. Falar a mesma linguagem administrativa torna os executivos e profissionais da organização minimamente cosmopolitas.

Ao mesmo tempo, o executivo brasileiro, indiano, ou mexicano, não se sentirá totalmente americano ou europeu, e nem se considerará como tal. Como disse um dos executivos entrevistados ao longo da pesquisa de campo para minha tese de doutorado (que depois causou um “frisson” para a “galera” de acadêmicos da ANPAD em 2009): “brasileiro globalizado é inglês de segunda classe”.

Entretanto, esta frase pode não ser válida em todos os contextos. Recorde-se aqui o que disse Perlmutter, com seu conceito de empresas etnocêntricas, policêntricas e geocêntricas:

a empresa etnocêntrica é complexa na matriz, de onde saem os procedimentos gerenciais e o fluxo de comunicação é centralizado: a nacionalidade da empresa é tipicamente a nacionalidade da matriz.

• na empresa policêntrica há considerável independência e autoridade da matriz relativamente baixa, em que procedimentos e controles têm significativa força local: a nacionalidade da empresa está mais associada ao país onde a unidade em questão atua.

• por fim, a empresa geocêntrica caracteriza-se por uma crescente complexidade e independência e uma abordagem colaborativa entre matriz e subsidiárias, em que fluxos de comunicação, sistemas de controle e procedimentos apresentam características globais e locais conforme a circunstância de sua aplicação: a empresa é vista como internacional, porém identificada com os interesses nacionais das subsidiárias.


Assim, o caso de uma empresa internacionalizada de cultura etnocêntrica, mais vale ser brasileiro, como disse o executivo. Entretanto, em uma cultura geocêntrica e emanada a partir de uma empresa com base fora do Brasil isto pode não ser verdade, e aí a mensagem do Arnaldo Antunes parece fazer mais sentido, embora possa ser feita a ressalva de que, neste caso, a balança entre não ser brasileiro e nem estrangeiro parece pender mais para este último lado.


Penso que o habitante do mundo corporativo deve pautar, portanto, por um cosmopolitismo “mais aberto”, que considere as forças da linguagem dominantes, mas também referências de suas próprias experiências locais e de outras culturas por onde ele tenha passado, ou seja, não associar o cosmopolitismo à mera reprodução de práticas americanas ou européias. Algo, assim, como aplicar adaptativamente às corporações a hermenêutica diatópica de Boaventura Santos, que prega o aproveitamento do saber das culturas, sem fins hegemônicos, ainda que sabendo que a tríade "lucro-consumo-aristocracia capitalista", como fim, tenha uma atração homogeneizadora inescapável.

Uma boa referência disto é feito por Sklair, que analisa as práticas transnacionais (PTNs), em três níveis, a cada um correspondendo uma instituição principal:

no nível econômico, a corporação transnacional (CTN);

no nível político, a classe capitalista transnacional (CCT): proprietários e controladores de corporações transnacionais e afiliadas, políticos, burocratas e profissionais globalizantes, elites do consumo, como a mídia; possui interesses globais e estilos de vida similares e cosmopolitas;

no nível ideológico-cultural, o consumismo, cujas práticas foram particularmente facilitadas pela revolução da tecnologia da informação.


Esta adaptação será mais viável com um grande esforço de aprendizagem e capacidade interpretativa, ao integrar os saberes advindos de diferentes contextos, práticas, classes e experiências. A dita “organização de aprendizagem” é aquela que também busca esculpir esta forma,mais bem acabada diria, de cosmopolitismo corporativo.

Para terminar, com vocês, Titãs! (veja o vídeo)

Américo Ramos , DSc em Administração.
E-mail: americodacostaramos@gmail.com.
Visite o blog Aprendizagem e Organização” (http:www.aprendizagemeorganizacao.com).

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